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O parto de um outro mundo

O parto de um outro mundo

Uma floresta. Um templo. Uma sala de aula. Um divã. Às vezes um ringue. Certamente uma ágora. Viajamos entre todos esses espaços no processo de curadoria da mostra competitiva do Cachoeiradoc.

Texto de Ana Rosa Marques

Uma floresta. Um templo. Uma sala de aula. Um divã. Às vezes um ringue. Certamente uma ágora. Viajamos entre todos esses espaços no processo de curadoria da mostra competitiva do CachoeiraDoc. Desbravamos milhares de imagens e sons das centenas de filmes que nos foram enviados de todo o Brasil. Curiosos, atentos e respeitosos com tudo o que inúmeros cineastas e os seres por eles filmados nos tinham a dizer e mostrar. Conhecemos com eles muitas maneiras de pensar, amar, existir e agir. Aprofundamos nossa capacidade de sentir, compreender e discutir sobre o cinema, o mundo e nós mesmos. E democraticamente chegamos a esse impressionante conjunto de filmes

Difícil definir um cinema que mobiliza tantas emoções e pensamentos. Filmes não devem ser reduzidos a palavras. Mas talvez algumas delas possam expressar o que sentimos e aprendemos com eles. E uma primeira lição é lutar. Em Audiência Pública? e Ressurgentes – um fime de ação direta, cidadãos na frente ou atrás das câmeras, enfrentam empreiteiros, polícia, pelegos, políticos e empresários para defender o bem comum, um conceito abominado pelo capital e pelos donos do poder, a cada dia mais vorazes. Contra eles,  um cinema urgente e feito de maneira coletiva. Que não só se insurge, mas age.

Como o documentário, gênero historicamente ligado a um compromisso humanista e de engajamento com o mundo poderia não reagir ? E quando essa opressão é empreendida impunemente pelo próprio Estado como vemos no longa Retratos de Identificação e no curta Ocupação? No primeiro, o olhar documental atravessa o tempo e vê que não é possível construir um presente se os crimes praticados no passado continuam impunes. No segundo, são as ruas de uma favela brasileira o caminho para esse olhar, que enxerga riqueza e beleza no cotidiano do local, para além da força invasora e violenta das tropas militares a serviço do Governo.

Em defesa da nossa história, memória e afetos, o cinema corrói para construir. Em Nova Dubai, contra os grandes empreendimentos imobiliários que emparedam subjetividades, desfiguram espaços e modos de vida, o corpo humano revida. A tela torna-se uma extensão dos punhos cerrados e esmurra. Mas ao mesmo tempo questiona-o: o que sente esse corpo?

Escutar o corpo é algo que o cinema hegemônico pouco fez. Muito pelo contrário. Com olhar voyeurístico ou repressor, aprisionou-o em representações e discursos tirânicos. Talvez não seja à toa que o som, seja da voz em Eu travesti ? e A paixão de JL como da música em Sem título # 1: Dance of Leitfossil ecoem o desejo de liberdade e amor desses corpos.

O corpo que não cala contra comportamentos e expectativas codificados. Senhor ou senhora de si. É assim que vemos os personagens de Ana, A loucura está entre nós, Meio fio e Noite. Todos dirigidos e protagonizados por mulheres. Afirmam um corpo e um olhar que sempre foram sujeitados, objetificados. Assumir o controle das narrativas sobre eles é portanto um gesto político. Mas o que os une é muito mais que uma questão de gênero, é uma questão de vida.

Percebemos o documentário também como uma grande alquimia que combina e transforma os elementos da própria realidade. Um campo privilegiado de criação e invenção de novas vozes, abordagens, dispositivos de escrita e de relações entre quem filma e é filmado. Como os curtas reunidos em uma sessão heterogênea esteticamente, mas conectados por um espírito que mira o mundo com um frescor como se fosse pela primeira vez que o visse. É o que nos transmite A última das Minas, Exílias, Ruim é ter que trabalhar e Virgindade.

Inventemos e reiventemos então a nossa relação com as imagens e sons, muitas vezes desgastada por uma cultura tão saturadas deles. Em A Festa e os cães, as imagens fixas das fotografias e a música reativam uma memória de si, de uma geração e de um lugar. Em Mais do que eu possa me reconhecer, as imagens ganham o movimento dos arquivos de vídeo e as canções dão volume a uma narrativa que tece também a relação entre personagem e cineasta.

Talvez seja preciso sermos criança, árvore ou passarinho para melhorarmos nosso olhar e ouvir. E que a sabedoria dos xamãs de Urihi Haromatipe – Curadores da Terra Floresta e dos meninos e meninas de O mar, a mata e a humanidade e No caminho com Mário ajude a tratar esse planeta tão enfermo.

Nossa principal maneira de agradecer aos títulos aqui citados e a todos aqueles que por um motivo ou outro aqui não estão é compartilhar com o nosso público o que  aprendemos nessa jornada. Porque o saber é um bicho que precisa de movimento e troca para reproduzir. E assim parir um mundo mais humano.

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