Olhar o breu na imensidão do escuro
Ana Rosa Marques
O mundo em desordem. O corpo sob muitas ordens. Que formatam, controlam e negociam vidas e modos de ser, estar e existir. Uma força obscura tenta arrumar à força aquilo que resiste à classificação e enquadramento. Da jovem que não se encaixa nos padrões de beleza vigentes ao quilombola que mantém sua roça autossustentável, tudo o que não seja uniforme, previsível, obediente e especialmente vendável será afastado. Contra os dragões que cospem as chamas de diversos tipos de maldade, as pessoas apresentam suas armas: o corpo, a palavra, a imaginação.
E ao cinema, o que cabe fazer? Como diz o filósofo italiano Agamben, o poeta, e a ele podemos aproximar o cineasta, deve arregalar os olhos, ver o seu tempo e enxergar não as luzes, mas o escuro. A Mostra Contemporânea reúne curtas que iluminam à sua maneira essas trevas para onde nos levaram o patriarcado, o machismo, o preconceito, a ganância, o autoritarismo. Agrupamo-os em quatro programas: Gênero – a pele que vestimos, Espaços em Disputa, O fim e o (re)começo do mundo e Bahia: ruínas em construção. Com os filmes seguimos para dentro e para fora do cinema, indo também às escolas e comunidades de Cachoeira e São Félix.
Em Gênero, a pele que vestimos, quatro obras destacam a luta das mulheres e trans, certamente uns dos movimentos mais aguerridos do Brasil contemporâneo, ao mesmo tempo que florido, poético e lindamente purpurinado. Pessoas que, diante da câmera, de um espelho, de um campo de futebol, em manifestações ou no simples cotidiano não hesitam em defender seus direitos e afirmar a autonomia sobre o seu próprio corpo.
Assim como os corpos, os espaços encontram-se também em disputa. Na cidade maravilha, na cidade monumento ou num paraíso ecológico, as populações enfrentam proibições e perigos para exercer os direitos mais básicos de qualquer cidadão como atravessar um beco ou parir. São como seres invisíveis aos olhos do poder que os enxergam apenas como entraves aos seus projetos e interesses políticos e econômicos. Não entendem que os lugares pertencem a quem os nutre de arte, histórias, sonhos e vidas.
Sinais dados pela natureza nos fazem acreditar que chegamos ao ponto máximo de devastação da Terra. Por onde andam as andorinhas, o lobo-guará, o mico-leão-dourado, as estrelas e ouriços do mar? E o pau-brasil, o jequitibá e a imbuia? E os índios Jumas ou Carijós? Extintos ou ameaçados pelo desmatamento, poluição ou avanço das fronteiras agrícolas. Mas a ambição do homem tem um preço a se pagar, acreditam os Maxacalis e, quem sabe, após o grande dilúvio as esperanças se renovem? Entre O fim e o (re) começo do mundo, há quem resista às pressões sobre os modos de vida mais solidários e em respeito ao meio ambiente, como os pescadores e camponeses, que cultivam não apenas um ofício, mas um ritmo, uma cultura e um outro universo de valores.
Enquanto isso, na terra da felicidade prometida, os responsáveis pela administração e proteção das cidades carregam e apontam suas pistolas reais ou simbólicas contra a população e em defesa de interesses privados. Montados em retroescavadeiras, viaturas ou cavalos, avançam sobre os espaços da nossa história, dos afetos e da sobrevivência. Sob os escombros ou túmulos, encenam um teatro farsesco ambientado em Miami ou Dubai e nos levam cada vez mais para perto de Canudos ou Palestina. Sorria, você está na Bahia: ruínas em construção.