Para atravessar o abismo
Amaranta Cesar, Ana Rosa Marques, Evandro de Freitas, Flora Braga, Laís Lima e
Ulisses Arthur
Na abertura da sexta edição do CachoeiraDoc, no ano passado, sob a moldura das árvores de uma praça pública em Cachoeira, comemorávamos, com os filmes realizados na Serra do Padeiro e a presença do Cacique Babau, a luta dos Tupinambá pela retomada das suas terras. Sua extrema coragem e lucidez parecem hoje combustíveis para atravessar o abismo que nos olha neste momento no país. De lá para cá, o líder Tupinambá foi preso arbitrariamente e os povos indígenas, assim como o povo negro, seguem ameaçados em suas próprias existências. Diante de tantos precipícios que se abrem ao nosso perplexo olhar, o CachoeiraDoc entrincheira-se juntos aos corpos que, com o cinema, insurgem-se.
A coleção de documentários brasileiros contemporâneos que aqui se apresenta foi urdida pela urgência – dos filmes e do Brasil. Nos guiou o entendimento de que a política no documentário é tanto sensibilidade quanto ação, e apostamos no questionamento da usual cisão ou hierarquia entre invenção formal e militância. Buscamos superar a distinção entre o estético e o político, uma distinção que, segundo a pesquisadora Nicole Brenez, não tem outro significado que não seja “ideológico e falsificador”, uma vez que “a crítica à ordem mundial implica na crítica à ordem discursiva”.
Frente à hostilidade que atinge sujeitos e comunidades diversas, as práticas documentais passam a atuar ativamente nas lutas, transcendendo a função de registro ou documentação, em uma aproximação entre as práticas política e cinematográfica. Enquanto o mundo do espetáculo mostra violência e morte e regozija-se com a audiência, ela própria contrafeita, converte-se em produtora e se apropria de suas histórias e imagens, autorrepresenta-se na defesa da vida e de seu espaço. Filmes como Onze, Sepulcro do Gato Preto, Quem Matou Eloá?, Voz das Mulheres Indígenas registram, questionam, reescrevem, denunciam de modo a atuar como força política nas disputas em curso.
Filmes como Vozerio e Índios no poder inscrevem-se de maneira ativa nas batalhas, atuam de modo ativo nas disputas fulcrais do Brasil contemporâneo, explicitando o cinema documental como força participativa e performativa nas ocupações das ruas e nos espaços de poder. O primeiro é a realização de um manifesto coletivo e colaborativo, que conta com imagens de origens diversas e a ação dos artistas-ativistas que se insurgem contra o capital, a opressão do Estado e a violência policial. No segundo, o povo indígena luta por seu lugar no Congresso Nacional. Sem a necessária representatividade política, os índios veem seus direitos constitucionais serem ameaçados e perseguidos. Filmes e lutas se tonificam com novas formas de ação política.
Rastros dessa luta compõem a matéria dos filmes Taego Awa e Grin. Para o trabalho de pesquisa e escuta que neles se opera, o encontro no presente, diante da câmera, e no passado, com as imagens de arquivo, inventam os filmes e reatualizam a possibilidade de novos encontros. As imagens enunciam a resistência indígena que se expressa sob as armas do branco, câmera e microfones enquanto arco e flecha, metáfora de luta diante das expropriações simbólicas e de território alvejadas sobre todos os povos indígenas. Taego Awa e Grin, por meio das formas, propõem a confluência dos que sobreviveram com os que se foram, sendo a terra o lugar de origem e o cinema, a trilha caminhada. Por outras vias, seus eventos poderiam ser destituídos de toda potência de luta.
Quais as relações existentes entre uma Jararacuçu, uma menina e a Lua? Em seu imperativo, Há terra! nos apresenta que a violência da mordida da cobra pode ser um acontecimento que se desdobra em comunhão. A caça como estratégia e liturgia, pois sendo da vida, o cinema opera por embates, fugas e conquistas, buscas por nossa própria história. Este gesto compõe Tança, memória em exercício que evoca para o filme, pessoas e lugar filmado a experiência de existência enquanto quilombola, e em Tekowe Nhepyrun- A Origem da Alma, onde tais movimentos de religação são apresentados por fragmentos preciosos da cosmologia Guarani, compartilhados pelo modo de processos de cura.
O cinema debruça-se sobre a fisicalidade do mundo e suas transformações, como ao desvelar os impactos do processo de transposição do rio São Francisco para a população sertaneja em Dia de pagamento, na antítese entre a memória afetiva da praia de Iracema e a voracidade capitalista das grandes empreiteiras em Fort Acquario, no rumo da rota dos ventos em Aracati, entre as histórias e lembranças de quem presenciou as mudanças da paisagem. Filmes que integram uma cartografia que se contrapõe à homogeneidade e indiferença dos mapas virtuais questionados em Nunca é noite no mapa.
A cidade se infertiliza e entristece sob as novas políticas e práticas de urbanização. Em Entretempo, a história de um lugar e de um povo, evocados pela canção, são soterrados por uma arquitetura segregacionista, asséptica e que isola cada vez mais seus habitantes e cujos contornos são traduzidos pela repetição e artificialidade das imagens de arquivo utilizadas. Gestos de montagem que ganham um outro significado em Sem Título #2: La Mer Larme. Aqui, as imagens centenárias do mar vagueiam e nos levam a lugares e sentimentos que nenhuma das línguas cantadas poderia explicar. Em Filme de aborto, experimenta-se de modo radical ativar e provocar os lugares de fala dos homens e das mulheres, através de um invento-manifesto-pirata que mistura Brecht e Capão Redondo, luta de classes e de gêneros, depoimentos e arquivos do Youtube.
Pode o documentário ser, ele mesmo, um laboratório da memória? De que maneira os procedimentos cinematográficos investigam, resgatam e reelaboram experiências do passado à luz do presente? São algumas das perguntas postas em questão por Orestes, A Noite Escura da Alma e Procura-se Irenice. Os filmes indagam o passado vivido na ditadura militar e que persiste no presente na forma de traumas, impunidade e silêncio. O longa paulista reflete sobre a Justiça e aproxima a violência praticada nos dias atuais aos crimes de Estado não punidos até hoje, através de uma multiplicidade dissonante de pontos de vista e diferentes procedimentos de mise-en-scène, como depoimentos, encenação e psicodrama. Já o longa baiano, ao articular testemunhos e performances, promove, a um só tempo, uma escuta e uma interpretação da memória dos militantes torturados na Bahia, estado onde a ditadura permaneceu e se projetou na cultura. O personagem que dá nome ao título do curta paulista foi uma voz que se insubordinou e desafiou o preconceito (racial e de gênero) e o controle dos corpos e comportamentos impostos pela ditadura militar. Por não aceitar ser subjugada, Irenice foi boicotada na sua profissão, o atletismo, e apagada da história. No filme, seus vestígios são investigados para que se reconheça e se afirme a importância que lhe é de direito.
Conhecer e reconhecer a existência e singularidade de quem teceu e tece nossa história ao mesmo tempo em que se insurge contra seu próprio apagamento é o desafio de um conjunto dos curtas reunidos. Em Antonieta, acompanhamos a saga de uma mulher negra em defesa da educação. Conectando as memórias da vivência com os índios xavantes e o candomblé, a história de Abigail emerge das imagens de arquivo e da mise-en-scène partilhada. Em O Retrato de Carmem D., as nuances da psique humana desdobram-se nas relações familiares e no cotidiano de uma mãe com sua filha, que fazem da câmera testemunha e analista. Seu Osvaldo, o primeiro dj do Brasil, era negro e organizava bailes como alternativa para a segregação social e racial. Sua Orquestra invisível Let’s Dance era mais que uma festa, lugar de afirmação, pelos corpos, de uma comunidade, que o documentário trabalha para reinscrever na história.
O mundo não quer que voemos, nos quer com os pés no chão, amarrados a instâncias que reproduzem valores antiquados, estudando e trabalhando sem perguntar para quê ou para onde. Vítor com sua capa e Jonas em cima do trapézio mostram que não é cedo nem tarde demais para sonhar e lutar por isso. Em O voo e Jonas e o circo sem Lona, acompanhamos o tecer dessas fantasias, e por que não, realidades, onde a câmera que observa é a mesma que fica de lado, deixando as mãos livres para amparar as quedas e dizer que a história não acaba aí; é sempre tempo de voar, para atravessar abismos.