Na Mostra Clássicos do Real, serão exibidos 3 filmes de Guido Araújo.
Texto de Guido Araújo
Quando em 1969 me instalei com a equipe na cidade de Nazaré das Farinhas, para a realização do filme Maragogipinho, não podia imaginar as surpresas agradáveis que iria encontrar pela frente.
Depois de poucos dias hospedado no hotelzinho situado perto do cais fluvial do rio Jaguaribe, que atravessa a cidade, fui despertado num amanhecer de uma quarta-feira com uma movimentação inusitada que vinha do lado do rio. Saí em direção à porta do hotel e logo dei de cara com o grande número de pessoas e animais carregados de mercadorias, dirigindo-se ao cais, que, por sua vez, estava apinhado de saveiros ancorados. Na ocasião contei ao todo 97 saveiros de carga, recebendo as mercadoria que chegavam, conduzidas sobretudo por bois, cavalos e burros. Era um espetáculo arrebatador aquela movimentação que se desdobrava na beira do cais.
Depois de colher algumas informações com o pessoal do hotel sobre todo aquele inusitado despertar, fiquei sabendo que se tratava da feira da banana, uma tradicional feira que acontecia cada quarta-feira e que era conhecida como da Banana, por ser o produto que predominava no carregamento que se processava para os saveiros de carga. O curioso era que jamais tinha ouvido falar da tal feira. Na realidade era um fenômeno local, conhecido apenas pelas pessoas de Nazaré e das regiões circunvizinhas. De fato o que acontecia era o seguinte: na quarta de cada semana toda a produção de iguarias da redondeza com destino ao mercado da capital baiana era embarcada nos saveiros e estes, ao entardecer partiam com destino a Salvador para chegar na capital dois dias depois. O espetáculo mais belo e de uma extraordinária plasticidade era o momento em que os saveiros levantavam as velas, pegavam a brisa da tarde e singravam num verdadeiro balé, na desembocadura do rio, que despejava suas águas na Baía de Todos os Santos.
O certo é que fui em busca do pequeno lugarejo onde os habilidosos oleiros criavam as famosas cerâmicas de caxixi de Maragogipinho e pelo caminho me deparei com a ideia de um novo filme sobre a região, surgindo daí dois anos depois o documentário Feira da Banana já em cores e na bitola de 35 mm.
Quando parti para a realização do filme Feira da Banana, mais uma vez me hospedei com a equipe em Nazaré das Farinhas, mas desta feita também em Maragogipe. Não demorou para me deparar com a construção do “ferry boat” e o que isto significava para aquele universo que eu explorava em filmagem.
Senti de imediato que se aproximava o fim do saveiro como transporte de carga. Uma grande transformação iria se processar na paisagem e na vida daquela gente que durante séculos tinha o transporte fluvial como meio de locomoção, que os aproximava dos rios, ilhas em direção a Salvador, sobretudo dos ancoradouros do Mercado Modelo e da Água de Meninos.
Estava fadado que dentro em pouco, com o avanço da construção do “ferry boat” e o surgimento da “Ponte do Funil”, ligando a Ilha de Itaparica ao continente, a Baía de Todos os Santos já não seria a mesma. O caminhão viria substituir o saveiro no transporte, tirando toda a beleza plástica das velas soltas, que, tangidas pela viração das tardes, enchiam de encanto as águas e o céu da Baía de Todos os Santos.
Enquanto avançava na realização da Feira da Banana, via crescer ante os meus olhos e na minha imaginação um terceiro filme que iria fechar o ciclo daquele mundo que compunha os saveiros, os saveiristas, os estaleiros e todo o universo mercantil que havia dominado até então a paradisíaca paisagem da Baía de Todos os Santos. Encerrando a trilogia, surgiu então A morte das velas do Recôncavo.
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