– por Luan Santos –

Meninos rimam no ritmo de um funk sobre suas experiências e pulsações de futuro na calada da noite em meio aos becos do bairro. A câmera vagueia por essas vozes que parecem ecoar sob as luzes das casas de uma periferia, que ilumina e ao mesmo tempo é iluminada por esses meninos. Os planos que se seguem após o descanso das vozes captam becos e vielas de uma periferia de São Paulo, os ruídos de sirene ao fundo impregnam as imagens com uma atmosfera densa, materialidade que se sente na pele ao irradiar uma tensão de que “algo de ruim pode acontecer”. Na parede de uma escada a pixação escrito “Nada Muda” capta a tensão dos planos e choca-se com as rimas embebidas de esperança de outrora. Essa é a abertura da obra “Entre Nós e o Mundo” (2019) dirigido por Fabio Rodrigo (SP), uma narrativa que se articula na potência do choque entre sentimentos, de ir além da violência da dor para desaguar em ternura, um olhar carinhoso para Vila Ede – ressoando em vários outros bairros periféricos do Brasil – enxergando nas nossas crianças o futuro que se desenvolve. A nostalgia como materialidade que aspira ao futuro re estruturando o passado. Sem esquecer as violências de outrora, mas numa busca de preencher as lacunas com momentos doces. 

Se tratando de narrativas que se passam em periferias do Brasil, “Entre Nós e o Mundo” está bem distante de explorar esses bairros e as pessoas que vivem neles retratando a violência constante infligida contra seus corpos. Optando por direcionar seu olhar para captar as complexidades afetivas de famílias, inserindo o próprio bairro como um componente familiar, “Entre Nós e o Mundo” matiza as dores e as delícias de viver na Vila Ede. Érika está grávida e acorda para mais um dia. Na cozinha, observa a rua ruidosa da janela com grades. Mãe de Theylor e Nícolas, Érika agora está grávida de uma menina chamada Alícia, que infelizmente não vai poder conhecer o irmão mais velho, exceto por fotos, histórias da família e pela própria obra que se desenrola. O genocídio da juventude preta no Brasil, através de instituições racistas como as Polícias Militares, ocorre sob o aval do Estado Brasileiro, principalmente nas periferias das cidades. Theylor Alexandre de 16 anos foi assassinado por policiais militares na frente de sua escola. Essa informação agonizante nos chega com um voice-over da tia de Theylor, enquanto as ruas da Vila Ede são captadas com singularidade íntima. Abordando um tema complexo e sofrido, a narrativa da obra opera deslocamentos entre o que se é dito e o que é visto, possibilitando uma dualidade que preserva a dor das pessoas próximas (e o espectador), enxugando as angústias dos relatos sem diminuir a violência do ato. Logo após o áudio que nos informa sobre o falecimento de Theylor, vemos Érika costurar um tecido rosa para sua filha que ainda irá nascer, em um gesto (do filme e da Érika), que me parece, costurar outras possibilidades que escapem da dor, inscrevê-las em cada linha/plano, para captar as nuances de felicidade da vida que nos rodeia. 

Em certo momento, Fábio Rodrigo, que é primo da Érika, através de uma conversa por audios de Whatsapp, declara que “depois que embarquei nessa de dirigir filmes, fiquei mais nostálgico”. Essa frase ressoa pela própria obra como um conceito que parece embeber cada plano em uma atmosfera de pura familiaridade, como se fosse a casa da nossa infância em que sabemos as marcas e manchas de todas as paredes. Dessa mensagem de Whatsapp também surgiu outra característica que me parece saltar no filme, carinhosamente esculpida em sua estrutura. Conceição Evaristo, escritora e doutora de Letras, em um texto compartilha conosco as memórias enraizadas de sua mãe desenhando o sol com gravetos no chão-tela, buscando no gesto de desenhar invocar o sol para findar os nublados. A escrita, para Conceição Evaristo, seria então urgente, necessária e prospectiva, indagando-se que é “Preciso comprometer a escrita com a vida?” Dessa ideia que me parece se entrelaçar com o filme, afirmo que também é necessário comprometer o cinema com a vida*. Uma fruição que se abrace com nosso cotidiano. Um bairro onde futuros se tornam presentes. “Entre Nós e o Mundo” compõe um cinema de saudade, nostalgia como materialidade fílmica, que busca nas fotografias em família e nas conversas partilhadas os bons momentos que desencadeiam sorrisos. Os diálogos por mensagens de Whatsapp cotidianas são intercaladas com fotografias de Theylor e sua família há alguns anos atrás, incidindo passado, presente e futuro como temporalidades que se relacionam mutuamente, sem linearidade, em um constante devir que nos permite seguir além do trauma, ainda que este persista, para desaguar em afetividades compartilhadas. O chá de fraldas de Alícia e a conversa de Fábio com Érika sobre os filhos é de uma intimidade que aconchega e aquece o interior da gente. 

Em uma sequência final que se inicia observando com calma a bebê Alícia – que olha de volta para câmera, a narrativa perambula pelas ruas da Vila Ede com uma música que conduz os olhares familiares enxergando nas crianças uma potência infinita, futuros que correm e jogam bola na rua descalços no asfalto quente. Nicolas (MC Rafinha ZN), seus amigos MC Biel SP e MC Kinho caminham para vida. Um menino negro com a camisa azul encara a câmera por breves instantes enquanto pedala sua bicicleta levando sua irmã mais nova consigo rumo ao que as câmeras não podem captar integralmente, na vida que escorre pelas frestas dos planos.

“Entre Nós e o Mundo” abriga tanta vida dentro de si que deságua feito águas do Rio Paraguaçu nas ruas de Cachoeira. Deslocando a dor do trauma para captar as matizes do cotidiano sensível que incide na Vila Ede, a obra observa com cuidado o germinar de renovação, pulsações de esperanças. Uma homenagem para o Theylor e para a felicidade que recusa ceder ao trauma da violência.

*Agradeço ao Fábio Rodrigues Filho por germinar, involuntariamente, nas minhas reflexões essa ideia que é tão preciosa. 

Da Grafia-Desenho de Minha Mãe Um Dos Lugares de Nascimento de Minha Escrita por Conceição Evaristo. Disponível em: http://nossaescrevivencia.blogspot.com/2012/08/da-grafia-desenho-de-minha-mae-um-dos.html