– por Viviane Goulart –
No dicionário da internet duas interpretações para o título, optei pela primeira, apesar de não dizêe-la.
O fotograma é para abrir caminhos e a palavra retalhar, quer dizer aqui cortes, pedaços, que como numa montagem cinematográfica são dispersos e vastos, cabe ao editor reter e escolher, para assim criar mais uma etapa ou camada da obra. Retiradas de seus lugares de origem – neste raciocínio, a origem seria a obra em si; as imagens, aquelas que ficam, que fincam a alma, a memória, o reflexo, a vista ou o sentido, as imagens mexem comigo. Vou me ater a elas, para dizer como o Cachoeira doc inundou almas neste fim de dezembro de 2020.
Makota Valdina homenageada com alguns filmes nesta edição, surge na mata da UFMG (em Retrato da Mestra Makota Valdina – longa-metragem, Minas Gerais, 2019, de César Guimarães e Pedro Aspahan), e me recordo dos encontros com o grupo de cerâmica que convivi ali, naquelas mesmas matas no primeiro semestre de 2015. Liderança religiosa, mulher negra, defensora dos direitos humanos e das mulheres, professora e militante, sentada ali, de frente às câmeras, ela ensina, me ensina, está viva… As imagens tem este poder, de mover o tempo, de reconstruir o tempo, mexer com o passado, com o futuro e com o presente.
Quando ouço Makota, percebo o poder da educação, e (com ela) de dentro de uma universidade pública brasileira, penso na luta pela permanência e presença de conhecimentos tradicionais e étnico- raciais, dentro destes espaços formativos. Retorno à Cachoeira, sigo para o Recôncavo Baiano, onde ainda não pisei. Na oficina com Ingá, me deparo com um curta-metragem de Ulisses Arthur: CorpoStyleDanceMachine, onde palavras são colocadas em cena como imagens – deslocadas da voz do personagem para uma descrição da Palavra Visível – com o aspecto de Créditos Finais de um filme, porém a estética é subvertida em texto e não mais créditos, é verbo, faz parte da cena e do discurso do personagem principal da obra. Este jogo com a palavra que “salta” o corpo de quem diz, pude ver em Sair do Armário (Bahia, 2018, 3 min.), de Marina Pontes. No curta-metragem da sessão “Quando o invisível se torna visível o olho demora a acostumar”, um diálogo com a mãe aparece em áudio e legenda, reverberados na voz de uma mulher lésbica que revela sua escolha e sua personalidade para a Mãe. Ela grava a voz, apenas a voz. O filme de Marina Pontes é um diálogo entre mãe e filha, e para o mundo vira Cinema, mas percebam, o gesto nele contido e seu efeito vão além da estrutura fílmica. Duas mulheres falam sobre existências e escolhas de vida, escolhas de bem viver, escolhas de ser. A mãe recusa, a filha diz. O gesto de Marina em deixar invisível a imagem, apenas a presença das palavras e do som de sua voz, ampliam esta situação de mundo. Poderia ser eu, atrás da tela preta, poderia ser você, e podem ser muitas de nós, pode ser hoje, pode ser em outro tempo histórico: futuro ou passado.
Dispositivos… Foram tantos deles vistos nestas obras de Cachoeira doc 2020. Vou me ater às imagens, sigo com elas.
E no caminho, seguindo de Goiás para Minas Gerais (literalmente), escrevo sobre Michele de Michele Mesma: Narrativas de uma Mulher Sertaneja(Bahia, 2019, 12 min.) de Michele Menezes, em relação a Um de vermelho e um de amarelo (Minas Gerais, 2020, 14 min.), de Frad, GM, Lipe. Gosto do efeito destas imagens sobre o cinema… Sigo com o pensamento sobre o gesto, sobre o processo e sobre o tempo de se fazer uma obra fílmica. Em Um de vermelho e um de amarelo encontro com as imagens dos diretores, percebo no título (após assistir ao filme) a proposta de um jogo, de uma brincadeira com as imagens. Os diretores dão voz aos personagens e geram novos significados ao que gravam, com a montagem inserem uma conversa com reflexões sobre os seus cotidianos, agora corporificado em dois personagens capturados pela câmera, os quais elegem como representantes de suas falas. A câmera treme nas mãos daqueles que a operam, ao mesmo tempo que mira, foca e se aproxima… O morro ocupa a tela, apresenta uma parte da Serra e com um movimento de zoom até a imagem chega até dois rapazes, um de vermelho e um de amarelo. Caminho agora com Michele, uma mulher, uma jovem sertaneja… A paisagem de seu sertão me anima a contar mais histórias, a fazer cinema e a fazer documentário. Um filme diário. O olhar da diretora sobre o seu lugar, quem poderia falar? O filme de Michele recupera meu passado, me leva aos primeiros contatos com o audiovisual, em uma época que eu ainda não sabia o que tinha que ser: fotógrafa ou operadora de câmera? Sigo com as imagens, todas elas, as que nossa retina apreende, segura e transforma. E a partir do dispositivo da memória, digo: não nos deixemos nos perder pelas imagens com as quais nos integramos e/ou interagimos. Elas podem existir de diversas maneiras: mentais, físicas, em papel ou digitais, de todas as formas elas existem – até em sonhos são reais. Chego na imagem de arquivo, nos vestígios e nas memórias.
Documentário é ver na realidade histórias para contar. É inventar, revelar e reverberar com as artes cinematográficas! Lembrando sempre que um filme é feito de escolhas.
De uma única memória Bárbara faz um filme, lembra de seu pai e faz cinema. Como uma RG vira cinema? Intrigada, deixo o texto dela dizer além do próprio filme, o sentido deste ser: Bárbara Carmo e a amplitude do diálogo de seu trabalho Vander (Bahia, 2019, 2’), como o filme Cinema Contemporâneo (Pernambuco, 2019, 5’) de Felipe André Silva, com quem partilho: Cinema é Cura. Que bom que você fez o filme Felipe, gostei de quando falou: “Se não fosse eu, quem iria contar esta história?”.
Continuo com o arquivo, para pensar sobre as tecnologias passadas e presentes, em um futuro distópico ou real, atravessada pelas sessões “As naves pousaram anos atrás” e “A fuga só acontece porque é impossível”. Relatos Tecnopobres (Goiás, 2019, 12’), direção de João Batista Silva, um filme híbrido, que através de imagens reais de um passado recente, anuncia um futuro num presente caótico, no qual resistimos para permanecer no planeta Terra. (Presságio de uma pandemia? Talvez). No curta os guerrilheiros do exército de libertação tecnopobre vivem em subsolos e usam máscaras devido à atual situação da atmosfera e do ar no nosso planeta. O filme de Thiago Foresti Invasão Espacial (Distrito Federal, 2019, 15’) conecta com “os” Relatos Tecnopobres, onde João Batista faz um presságio do devir, comunica com o passado através das recentes manifestações urbanas e das lutas populares brasileiras, e anuncia a resistência. Thiago discorre sobre a realidade em conjunto à algumas comunidades de Alcântara no Maranhão do Brasil, e a partir da montagem e das cartelas de seu doc., refletimos sobre a ideia e concepção de uma invasão orquestrada pela NASA e uma base de foguetes que se instalou no litoral do estado do Maranhão. Nos relatos dos moradores e perspectivas destas comunidades pesqueiras, percebemos a distância entre os invasores e as famílias locais: “era como se a gente fosse mudo né, mas nós não somos mudos”. A distopia é uma realidade no Brasil atual.
O corpo. Volto para os filmes e para as obras realizadas sob direção de Mulheres: tamanhas obras, diferentes propostas. Nos cabelos de Irun Orí (Bahia, 2020, 8 min.) de Juh Almeida, vi mapas, vi caminhos, vi trajetos, vi texturas, vi sentidos. Deixo aqui alguns fotogramas, para a interação com as sensações que possam existir:
Encontro com Corpus Infinitum fala-performance de abertura com Denise Ferreira da Silva, com quem interajo ereintegro com o texto-carta-diário de Lina Cirino. A fala de Denise, sua pessoa, sua imagem, seu jogo e sua presença neste festival se fundem à significância do que acredito ser: Potência. Elas dizem, eu ouvi, e li para assim poder conversar e reunir minhas reflexões às delas.
Catártico todo este texto. O ano foi assim né? Retomo o corpo, como o lugar de expressão e encontro com o filme e instalação Lembrar daquilo que esqueci (Espírito Santo, 2020, 20 min.), de Castiel Vitorino Brasileiro. Ela pergunta: o que é Cura? Para todes que a visitam. Na imensidão de seu sagrado, consigo permear o quarto visitado, margeio como um rio pela superfície, próxima a este sagrado, com o fluxo das performances e perguntas ali presentes. Tento entender o que a Cura significa para mim e para o meu ser. Não preciso dizer. Aqui a proposta é a instiga para quem não viu e a extensão da experiência para quem se “presentificou” ou se fez presente neste ano com o Cachoeira doc.
Existem mais impressões para contar, mas o tempo deste texto já se expirou. O tempo. Me despeço com Makota Valdina e seu terreiro Nzo Onimboyá, com a presença dos músicos Queinho Pinto, Juninho Pakapim, Marcio Manchinha e Marinho Groove, família de Makota, ao som em conjunto com Mateus Aleluia, voz, ser e pessoa também homenageada nesta edição do Cachoeira doc. No movimento das águas presentes em várias das obras assistidas e encontradas neste festival, deixo o sopro da abertura e das semanas que o Cachoeira doc proporcionou. Sejamos água, nos inundemos quando nos encontrarmos – em diferentes realidades e circunstâncias, e que possamos nos afetar… Deixar sentir (algo acessível) ao que compreendemos ser Sentido.