“Nós nunca nascemos, nós nunca morremos. Nós transicionamos”*

por Evelyn Sacramento, Kênia Freitas e Ramayana Lira

Os filmes aqui elencados tensionam, de forma interligada, passado e futuro, o visível e o invisível, presenças e ausências. São obras que ressaltam relações íntimas e familiares sem, contudo, apostar na teleologia da linhagem natural; pelo contrário, figuram desalinhamentos e realinhamentos, seja através de cortes abruptos nas relações, de maneira que o tecido do filme se torna ao mesmo tempo invocação de uma ausência e a presentificação de uma falta, seja através da criação de novos fios de relação, que inventam caminhos de aproximação entre geografias e histórias distantes e refundam laços de parentesco e de pertença cultural. 

Sessão 1 – “O Destino da Semente da Terra é criar raízes entre as estrelas”**

Assim, ao enredarmos (Outros) Fundamentos (Aline Motta), Irun Orí (Juh Almeida) e O Mundo Preto Tem Mais Vida (Sabrina Duran), procuramos ativar os encontros da memória e da história atualizados no presente que resiste em ceder ao trauma, à autoridade sobre a vida. Fica escuro, também, nessa fricção entre as obras, que as histórias estão enraizadas em geografias móveis, apoiando-se na potência do corte cinematográfico para justapor espaços que remontam um mosaico de existências e resistências negras. (Outros) Fundamentos e Irun Orí materializam essas passagens transatlânticas, realizando uma dobra no espaço que liga indissociavelmente as histórias e os presentes do Brasil e África. Em O Mundo Preto Tem Mais Vida a travessia é também entre vida e morte, morte preta e morte branca. Abrindo-se enfim como um filme-portal Guiné-Bissau/Cabo Verde-Brasil, vida na morte versus morte em vida.

(Outros) Fundamentos (São Paulo, 2019, 15 min.), de Aline Motta

Irun Orí (Bahia, 2020, 8 min.), de Juh Almeida

O Mundo Preto tem Mais Vida (Maranhão, 2018, 37 min.), de Sabrina Duran

Disponíveis online entre 05 e 11/12 e 19 e 20/12.

Sessão 2 – “Quando o invisível se torna visível o olho demora a acostumar”***

Sair do Armário (Marina Pontes), Sob a sombra da palmeira (Tomyo Costa Ito), Notícias de São Paulo (Priscila Nascimento) e Michele de Michele Mesma: Narrativas de uma Mulher Sertaneja (Michele Menezes) fazem do jogo entre imagem e voz uma conjuração de ausências, traduzidas pelos diálogos, depoimentos e narrações como o invisível da imagem. Sair do Armário tem um projeto radicalmente fincado no invisível ao nos negar a imagem de uma diálogo entre mãe e filha, restando-nos as legendas que reiteram a força dramática do momento de saída de armário da jovem. Sob a sombra da palmeira e Notícias de São Paulo nos levam ao limiar das desaparições, permanências e reinvenções no poema e nas imagens. Ficamos assim com os muito ângulos de uma palmeira (e a sua sombra) que não cessam de crescer e multiplicar, enquanto tudo ao redor se vai: floresta, mangueiras, plantação de lótus, pai… Figura paterna que também assombra com as suas notícias de São Paulo, junto com as fotos de família que “tinham mas acabaram”, ao passo que o filme se investe em criar novos registros, retratos matriarcais de cotidiano e vida. Inventário de imagens familiares que Michele percorre e se despede: a chuva que fala, “a boniteza de dizer pedra de outro jeito”, a casa que vira arquibancada com a televisão. Por suas imagens-palavras o filme nos conduz à um “até logo”, com medo e liberdade para se tornar de si mesma.

Sair do Armário (Bahia, 2018, 3 min.), de Marina Pontes

Sob a sombra da palmeira (Minas Gerais, 2020, 17 min.), de Tomyo Costa Ito

Notícias de São Paulo (Pernambuco, 2019, 11 min.), de Priscila Nascimento

Michele de Michele Mesma: Narrativas de uma Mulher Sertaneja (Bahia, 2019, 12 min.), de Michele Menezes

Disponíveis online entre 05 e 11/12 e 19 e 20/12.

Sessão 3 – “Nunaqtigiit (Pessoas relacionadas pela posse comum do território)”****

Adentramos a essa constelação de filmes pelo Paraguaçu como fundamento e desaguamos em territórios partilhados no amor. Mães do Derick (Dê Kelm) e Filme de Domingo (Lincoln Péricles) partilham de uma preocupação em mostrar o mundo não apenas através da perspectivas de suas personagens adultas e sua relação conflituosa com o mundo, mas também sob o ponto de vista de duas crianças cujas presenças costuram a trama e amalgamam laços comunitários. Em Mães do Derick, a construção de uma família lésbica poliamorosa aponta de maneira quase utópica para um mundo de mulheres, entre mulheres. Em Filme de Domingo, a quebrada é transbordamento de vida, saudade, corres, notícias tristes, cosquinhas na rede, pastel na feira, fim de tarde juntinhos, espiritualidades ancestrais. Sem distinções.

Filme de Domingo (São Paulo, 2020, 28 min.), de Lincoln Péricles

Mães do Derick (Paraná, 2020, 77 min.), de Dê Kelm

Disponíveis online entre 05 e 11/12 e 19 e 20/12.

*Tradução livre de um verso do Poema “The Baptism”, de Carl Hancock Rux, 2020.

** “Parábola do Semeador”, de Octavia Butler, 2018 [1993]

*** “NOIRBLUE – deslocamentos de uma dança”, de Ana Pi, 2017.

**** Tradução do título do poema de Joan Naviyuk Kane, 2013.