– por Lígia Franco –

Um filme que se passa num único dia, um dia de domingo, dia de feira, dia de visitar família, de deitar na rede e ficar de chamego com quem se ama. Apresentar as perspectivas da vida a partir do olhar de uma criança, para quem qualquer coisa é pura brincadeira. Nas mãos dela a câmera vira a ferramenta da youtuber que apresenta seu ambiente familiar com muita espontaneidade, leveza e alegria. Um respiro em meio a tantas questões difíceis da vida na quebrada, na periferia, na vivência de um corpo preto e indígena dentro de uma sociedade estruturada sob a desigualdade e o racismo. Lógicas que não deixam de ser colocadas no filme, visto que são violências presentes no dia-a-dia. O filme traz isso na maneira estratégica de se viver subvertendo, resistindo, aproveitando um dia de domingo de forma tranquila e feliz, no carinho e amor de uma criança que também precisará aprender formas estratégicas de sobrevivência. Pontos que parecem distantes, mas que na verdade estão fortemente entrelaçados e que se sobrepõem, se complementam: o afeto, o cinema e as estratégias de luta perante um sistema que marginaliza e oprime. E o afeto também como estratégia de luta. O cinema como estratégia de luta. O cinema que é expressão de afeto.

Os vínculos entre esses pontos ganham a cena nos sonhos compartilhados, no rap e beats criados em conjunto, nas brincadeiras que ensinam, na câmera dispositivo de expressão da fantasia, na intimidade ali colocada entre mãe, filha e tio. Uma intimidade que é também introduzida no filme através do território, o bairro, a Cohab, a feira. Território que cruza como mais um personagem, na medida em que seus recortes de imagens, sons, narrativas e pessoas sobrevêm na tela. Entre momentos de ficcionalização e documentário (por mais que seja difícil de dizer o que é ficção, o que é documentário), o filme traz imagens de arquivo gravadas em celular, áudios de whatsapp que funcionam como narrações, a produção de uma sessão de cinema na rua pras crianças e moradores do bairro. São esses os elementos que aproximam a realização do cinema das experiências cotidianas das pessoas, a possibilidade de fazer um cinema que fale de suas vivências: “cinema feito na nossa quebrada, com nossos próprios braços e mentes”.

As cartelas entre as cenas deixam comentários que dialogam diretamente com os personagens e que também parecem ser de alguma forma endereçados a nós enquanto espectadoras, com reflexões que questionam o cotidiano ou transcrevem as palavras que na cena se apresentam, mas que acabam por não ser ditas. As faixas sonoras, de forma bastante experimental, trabalham como que partindo da subjetividade das personagens, descrevendo e dando o tom de emoções, e misturando elementos sonoros que são presenças do território-personagem. A montagem em determinados momentos também se incumbe de materializar em imagens-memória, intuições, abstrações como na cena em que vemos a mãe de Duda entrar numa casa abandonada ou ainda quando ela observa o horizonte submersa nas águas de um lago. A espiritualidade e ancestralidade é evocada como mais um ponto de apoio. Oxum que vem na gira, cuidar e mostrar que existe um significado maior nisso tudo. É esse o cinema político, que no curta-metragem de Lincoln Péricles se corporifica. O “Filme de Domingo” é cinema de luta, de guerrilha, mas antes de tudo é um filme de afeto. E afeto que também é luta, no sentido mais forte e sincero que ele pode ter.