– por Lina Cirino –

Querido Diário,
Escrevo, pela primeira vez, já sabendo que um dia o perderei e alguém lerá o meu cotidiano. Não posso contar os detalhes sórdidos dos meus dias cativantes − poucos.

Saí de casa, cabreira, para comprar chocolates e voltei com um diário que com certeza vou perder em alguma encruzilhada… Decidi comprar pra soltar a mão, que anda muito acadêmica.

Hoje vi-ouvi a fala-performance de Denise Ferreira da Silva, no IX Cachoeiradoc. Ela começou falando sobre a palavra. Esta mesma que uso agora para me livrar dessa página em branco que tanto me atormenta. Catei um trecho, seu início, coisa difícil é começar, vou carimbar aqui − sem me curvar às normas da ABNT. Ai que delícia o poder de um querido diário

“A fala, o discurso, não tem nenhuma outra vantagem sobre as outras maneiras de expressar, sobre as imagens, os sons, os odores, os sabores… Mesmo assim, ainda assim: a fala, a palavra, a sentença, o parágrafo, o texto parecem tomar conta de tudo. Ocupar o sentido e o senso. Não é sensato, mas é quase impossível não perguntar: Por quê? Por que a fala e a palavra têm essa capacidade de ocupar o sentido e o senso? Talvez a imensidão da pergunta tenha a ver exatamente com isso: quero dizer, quais as impossibilidades de falar algo sem ou antes das palavras? Não há como dizer além do que as palavras permitem. Isso por duas limitações, por assim dizer. Em termos dos limites e das limitações das palavras, ou seja, daquilo que essas não podem expressar, e em termos daquilo que estas podem
expressar”.

Escrevo, querido diário, sabendo que ela − a palavra − sinuosa, escorregadia, engessada, paradoxal, insuficiente: cria materialidades por meio de suas edificações engendradas: os discursos. Malditos-benditos!

Mas assim como as palavras têm o poder de construir

elas também desconstroem.

Possibilidades…

Um filme é como um texto? Para ser lido, conectado, catado, desvendado,
interpretado, colhido? Ou a imagem

Quebra
Quem quiser revelá-la
?

É no corpo que integralizamos signos e sensibilidades provocadas por uma imagem que seduz nossa atenção. Mas este mesmo corpo pode se deparar com imagens (aqui não restritas à visão) que escapam seus mecanismos de compreensão − o inenarrável, inominável, incompreensível.

Cachoeira tá muito quente! O ventilador não tá dando conta. Ferve em mim muitas perguntas com essa fala-performance. E ela ainda inventou − olha que incrível − tirar cartas de Tarot, no meio do rolê. Vou recortar e colar aqui:

Me debruço sobre ela, a imagem, sentindo-sabendo que (me) quebrará em cacos. Mesmo se reuní-los [os cacos], a imagem não é a mesma. Ficará evidente as fissuras, rachaduras, cicatrizes de sua leitura em palavras: Denise à esquerda, trajando preto, sentada em um cômodo que lembra um escritório, em casa. Ao fundo uma divisória sanfonada − talvez para separar o que é casa e o que é trabalho: o que pode ser visto e o que não pode. Imagem tem dessas: de operar o visível e o invisível. Aquilo que sentimos e não sabemos dar nome tá no âmbito do invisível? No centro da imagem, pendendo à direita, o jogo. Doze cartas sobre a mesa, não só a de Denise, mas sobre as nossas também. Ela avisou: as cartas seriam tiradas para quem estivesse presente, partilhando da energia de sua fala-performance. Elas posam sobre um manto azul: ás de pentagramas; roda da fortuna; três de pentagramas; rainha de paus; seis de copas; cavaleiro de espadas; oito de espadas; o enforcado; roda da fortuna; nove de pentagramas; o diabo.  Ao fundo: água-espelho; linha-superfície. Denise flutua na água, abrindo caminhos de leituras. J, com sua percepção aguçada, planta rastros indisciplinados. Sugere “Descansar as espadas”. Precisamos encontrar outras armas para além das espadas para enfrentar o embate, complementou Denise. Quais imagens lutam como espadas? Me pergunto. Quais imagens precisam descansar, como as espadas?

Quais imagens são alternativas às espadas para enfrentar o embate?

O vento que entra pela janela ainda é quente. Calma Cachoeira!

Vou tomar um banho gelado.