Mostra Competitiva
Cinema: farol para um tempo sombrio
O conjunto dos filmes que apresentamos diz algo forte. Os sentimentos, reflexões e debates aos quais ele nos conduziu afirma que o cinema participa ativamente da construção de imaginários e, portanto, de mundos possíveis. Ignorar isso talvez seja compreender apenas parcialmente o lugar do cinema no mundo e na vida das pessoas. Os meses de intenso visionamento das obras confirmam nosso entendimento de que também somos arquitetos desse mundo por vir, uma vez que contribuímos para criar espaços de existência para os filmes e construímos uma comunidade de cinema.
As obras reunidas aqui dão a ver a constituição de uma subjetivação política que fortalece sujeitos coletivos sem anular a dimensão singular dos personagens. Fenômeno ímpar na história recente do cinema brasileiro, possivelmente um sintoma de reação à época sombria que nos atravessa, marcada por opressões e injustiças, e que nos incita a tomar posição e agir.
Se o estado de exceção parece ter se escancarado nos últimos anos, os moradores das periferias o percebem há muito mais tempo. Mataram Nossos Filhos apresenta a trajetória de luta das Mães de Maio, grupo organizado de mulheres que perderam seus entes durante uma chacina em 2006, conhecida como Crimes de Maio. Da dor irremediável surge a força para buscar por justiça e defesa da memória das centenas de jovens mortos pela Polícia Militar de São Paulo. A perda e a coragem para resistir e seguir na batalha reverberam também em Elas continuam lutando, curta que aborda o massacre do Pinheirinho a partir do testemunho de três mulheres que viviam na ocupação.
Para enfraquecer as lutas, os donos do poder inoculam o vírus do ódio que desmoraliza a crença e a participação na política. Transformam o divergente em inimigo. Por trás da linhas dos escudos experimenta olhar aquele com qual diverge não como um inimigo a ser eliminado, mas como um adversário, cujas ideias são combatidas, mas não impedidas de existir.
A câmera também pode assumir para si um posicionamento que reivindique através do confronto um lugar. A impassividade diante da imagem se torna condição impossível. Pois são muitas e muitos os que estão Na missão, com Kadu, lutando e morrendo pelo direito de morar, superando os medos, reconquistando as ruas e reaprendendo a força da vida coletiva, como em Filme de rua.
No rap e no ritual, as vozes que nos chegam pelo cinema transcendem os limites impostos ao corpo, afirmando, no território, uma existência ancestral. Assim o é em Ava Yvy Vera – A Terra do Povo do Raio, quando no real e na poesia, a árvore remanescente surge como a torre de conexão – com celulares e com os deuses – do povo kaiowá em defesa da vida e de sua terra sagrada. Em defesa da própria cidadania e dignidade, como na resistência partilhada por Leidiane e Andreia, que em Baronesa, sonham e sobrevivem, apesar de tudo: nos ensinam que os nossos sonhos nem sempre cabem no quadro, pois existe um mundo fora do cinema, que por meio e por dentro dele, devemos conquistar.
Essa conquista é também no sentido de fazer com que o mundo que vemos e ouvimos nas imagens e sons de Yuxiã, Ava Maragantu e O peixe continue a existir. Ele desdobra-se e impregna as formas fílmicas na intensidade de um sentimento vivido, no ritmo do trabalho ou da brincadeira dos personagens. Nos rios ou nas matas desses curtas, as pessoas encontram o respeito, o saber, a saúde e o alimento como já não é mais possível se achar nas poluídas e proibidas águas da Baía de Guanabara dos Pescadores da Maré.
Para quem a existência é negada, ser é resistir. Contra a tirania e a violência, prazer e liberdade! Meu Corpo é Político, ao desconstruir preconceitos de dentro e de fora, nos distancia dos rótulos que invisibilizam os sujeitos e seus corpos e nos aproxima de suas histórias. Nesse mesmo movimento, Vando Vulgo Vedita e Corpostyledancemachine mostram, com a força da forma e da performance, pessoas que transbordam em sonhos, vivências e desejos.
O cinema nos faz pensar que tipo de imagem produzimos, quais visibilizamos e por quê. Em Memórias do Subsolo o gesto está em rasurá-las, violá-las e até mesmo destruí-las. Por outro lado, a empatia é capaz de criar imagens como as que compartilham a dor da perda d’ A Gis e celebram sua força em vida, ou aquelas que acompanham a voz agora empoderada de Travessia, que jamais se calará novamente. Tais gestos se colocam lado a lado às pessoas para que ela possam, enquanto sujeitos de cinema, ser, expressando seu desejo de independência em Picivetagem ou resistindo frente às dificuldades em Deus.
Resistência que também faz parte da experiência de ocupação realizada por jovens secundaristas em Escolas em Luta. Um processo que é também de formação de si e de um grupo em uma rotina que requer organização coletiva, zelo com o bem público, mas também circulação de afeto. Afetos que integram pessoas na busca da garantia de direitos fundamentais e na afirmação de identidades tal qual os universitários negros de Anamnese, estudantes de medicina, que a partir de uma terapia em grupo se insurgem num filme-protesto contra o racismo estrutural e institucional. Num movimento próximo, pela maneira criativa como se apresenta, Historiografia busca retificar a narrativa oficial da arte e da ciência contada por homens através de uma montagem na perspectiva feminista com o material de arquivo.
Ao perscrutar o passado o cinema nos atenta ao presente. Em nome da América revisita e ressignifica imagens, testemunhos e arquivos para investigar um momento nebuloso da nossa história: a chegada de jovens norte-americanos como voluntários do programa Corpos da Paz. No Nordeste brasileiro, desde sempre castigado pela fome, atraso, desigualdade e violência acompanhamos uma complicada trama que envolve o golpe militar de 1964, a Guerra do Vietnã e a infiltração da CIA na América Latina.
No caminho inverso, a mirada ao Brasil contemporâneo em seus espaços de trabalho nos faz retroceder ao tempo da escravidão, que nunca deixou de existir e atualmente ganha nova roupagem pelas mãos de um governo servo do mercado. O caixa de um supermercado em Admin Admin, as plantações agrícolas de Latossolo, as obras do Terminal 13 do aeroporto de Guarulhos ou as areias da praia de Balança Brasil são tristes atualizações dos canaviais e lavras do Brasil Colônia que contrastam com a liberdade das experimentações de linguagem postas em prática por estes filmes.
Enquanto o mundo parece desabar diante de nossos olhos perplexos, do Cabula à Brasília, de Mariana à Ladeira da Cadeia, do Guaiviry ao que restou de Pinheirinho, ergue-se, com os filmes, nos filmes e pelos filmes, um corpo vigoroso de gente, de outros sujeitos históricos e políticos e de novos sujeitos de cinema, que se anuncia com uma força tremenda. Uma força que convida a reinventar a vida e o cinema sob as construções em ruína.
Amaranta Cesar, Ana Rosa Marques, Evandro Freitas, Flora Braga, Leon Sampaio