Homenagem a Luiz Paulino dos Santos
Sessão Clássicos do Real
Homenagem a Luiz Paulino dos Santos
Índios Zoró: antes, agora e depois?
A força ancestral e resistente dos povos indígenas, bem como o projeto violento e persistente de extermínio de seus indivíduos e culturas são tão intrinsecamente fundadores da nação brasileira que a convocação para revisitar ou retornar às histórias e aos territórios dos índios do Brasil não é inusual. E tem sido uma ocasião para o surgimento recente de importantes obras do documentário brasileiro contemporâneo, obras guiadas pelo princípio da retomada. É o caso dos filmes de Divino Tserewahú e de boa parte dos realizadores indígenas, para os quais o cinema é um espaço de resistência política e cultural. É o caso ainda de Corumbiara e Martírio, de Vincent Carelli, e de Serras da desordem, de Andrea Tonacci. Espaços de conflitos primordiais, os territórios indígenas desafiam também o tempo. Por isso, não parece ser por acaso que as terras indígenas se apresentem, para o cinema brasileiro, como terreno de ressurgimentos e redescobertas, inclusive de seus cineastas. É exatamente aí, na potência da retomada, onde reside a questão central do longa de retorno, em muitos sentidos, de Luiz Paulino dos Santos.
Em Índios Zoró, antes, agora, e depois?, 30 anos depois de ter realizado Ikatena, o curta documental sobre os povos Zoró, e há 20 anos distante do cinema, Luiz Paulino retorna para reencontrar os índios, devolver-lhes as imagens da década de 80 e registrar os antigos personagens em suas transformações. Seria possível dizer que o projeto de extermínio dos índios, físico e cultural, que está em curso há mais de 500 anos, e que se estende das catequeses à evangelização, oferece a força motriz para o percurso de Paulino. E se observarmos os filmes realizados nos territórios indígenas do Brasil e do mundo, veremos que o cinema é, nesses espaços, talvez mais do que em qualquer outro, instrumento contra o desaparecimento – desaparecimento tanto de vidas quanto de modos de vida. Não é por acaso que antes de sua partida de volta à aldeia Zoró, Luiz Paulino coloca em cena o poema-ode ao extermínio dos ameríndios, de autoria de Padre Anchieta, interrogando o monumento à barbárie colonial no centro do Rio de Janeiro. Ele revista também o mapa dos povos originários de Kurt Nimuendajú, essa impressionante cartografia do apagamento. O percurso do filme parece movido, portanto, por uma força de enfrentamento contra o projeto de extermínio, material, cultural e espiritual, que segue em marcha até os dias de hoje, em renovadas formas.
Mas dificilmente seria possível ignorar o que há, antes disso, na intrigante abertura do filme, em que a imagem da terra em rotação é embalada pela voz de Luiz Paulino, que evoca figuras cristãs e o som primordial hindu, forma de sintonia com a energia vibratória do cosmos, o OM que ressoa sobre as imagens da floresta amazônica no final desta sequência inicial. Desde a abertura, já se enuncia, então, a perspectiva absolutamente singular que dominará o filme, e que é resultado de uma, como nos diz Luiz Paulino “vontade xamânica” e de sua experiência de vida. Assim, somos lançados no que se configurará como uma espécie de ensaio litúrgico, para o qual o sincretismo oferece um princípio estético, discursivo e ético, e que faz o filme mover-se entre o assombro diante do risco de apagamento cultural dos índios e o desejo de fazer vibrar uma força espiritual contra os males “de uma sociedade falsa e traiçoeira”, “do progressismo nefasto”, “do capitalismo injusto”, para citar as expressões de Luiz Paulino.
Diante da exuberância de questões propostas pelo filme, chamam a atenção as conexões entre os Zoró e Luiz Paulino, o cinema e o tempo – o tempo desdobrado, entre passado, presente e futuro. A primeira forma de ligação entre esses quatro elementos abrigados em um mesmo espaço (espaço de conflito, não custa repetir) deriva do que considero o gesto fundador do filme: o ato de devolução da imagem. Devolver uma imagem é fazê-la operar entre tempos e sujeitos; é oferecê-la ao outro que a habita e, ao mesmo tempo, a uma reabertura temporal. É nesse jogo de tempos e olhares que o cinema pode atuar performativamente, fazendo ressurgir o passado no presente ou oferecendo ao presente uma perspectiva futura que está na revisitação corporal do passado. Aí reside a potência política deste dispositivo de devolver as imagens.
Mas o que se desdobra do ato de devolver a imagem em Índios Zoró parece ser algo de natureza um tanto diferente. No filme, há duas situações marcantes de revisionamento das imagens de Ikatena, o filme anterior: a primeira delas acontece na Funasa, onde boa parte dos índios recebe tratamento médico; e a segunda, na aldeia, no que me pareceu ser um culto evangélico. Nessa situação, o cinema atua, em dois tempos, para materializar o conflito político-histórico. Os vestígios da evangelização são flagrados durante todo o filme, mas é na resposta do chefe/pastor à exuberância dos corpos e da tradição trazidos de volta pelas imagens do passado que o projeto de evangelização aparece em sua forma mais violenta: “Naquele tempo estávamos muito perdidos. Muito longe de deus. Nós estávamos adorando um deus falso” – ele diz.
James Clifford, antropólogo americano, afirma que “o passado é para as cosmologias indígenas o lugar de onde se vê o futuro”. A evangelização, por sua vez, como agente invasor, parece bloquear essa passagem entre os tempos e barrar a mirada para o futuro. E então, seria este o fim dos tempos? Há algo que resta? Uma das possíveis respostas para a pergunta pode estar naquela que me parece ser a sequência central deste filme a sua mais bela cena.
Paulino retorna ao local das imagens mais retomadas de Ikatena, o rio, que no filme antigo é povoado por crianças felizes e pululantes e borboletas amarelas. O rio está ainda lá. Estão também as borboletas. Mas as crianças se foram. São hoje os adultos evangelizados. A montagem, que me arrisco a chamar de transcendental, e que agilmente constrói elos lógicos e sensoriais, encarrega-se, então, de operar passagens entre os tempos, de materializar a memória, de fazer as crianças conviverem com o cineasta. Mas é no corpo de Paulino que o atravessamento de temporalidades performa-se na sua potência máxima, quando, de repente, ele mergulha no rio, repetindo e atualizando o gesto das crianças de ontem. Paulino mergulha para o mundo indígena desaparecido, mas imortalizado em seu filme Ikatena, e re-inscreve-se assim no seu próprio cinema. Este súbito, simples e exuberante mergulho no rio me parece encarnar o desejo de retomada do modo de vida indígena tradicional, mas sobretudo materializa o retorno imersivo do cineasta ao cinema. Assim, devolver uma imagem finalmente significa receber de volta o cinema, ou melhor, retomar e o cinema como modo de vida.
É isso que justifica a centralidade do corpo, da voz e da espiritualidade de Paulino no filme. Os conflitos entre as temporalidades e culturas, as questões políticas e históricas que se sobrepõem no espaço atravessado pelo filme são catalizados pelos percursos físicos e espirituais de Luiz Paulino, e convergem para seu corpo. É ele que mobiliza e faz vibrar tanto as contradições, bastante presentes no filme quanto as formas de convivência entre diferenças, em seus movimentos sincréticos. Resta em seu último filme, assim, a intensidade de sua presença, mística e, agora, mítica.
Amaranta Cesar
Dia 10/09, às 14h
Índio Zoró: Antes hoje e depois?
Brasil, 2016, 70 min.
De Luiz Paulino dos Santos
Há trinta anos, o diretor Luiz Paulino dos Santos realizou um curta-metragem sobre os costumes e práticas dos índios Zoró. Hoje, ele retorna ao local para exibir, pela primeira vez, seu filme aos índios, e descobrir o que mudou neste tempo. O cineasta encontra um grupo transformado pela tecnologia, pelo acesso aos bens de consumo e pela assimilação da religião cristã.