“Não deixe a escola acabar com seu desejo de aprender”, era o conselho grafado por um mestre anônimo em um muro da cidade. Quando a li, faziam exatos 50 dias que os professores mantinham as aulas suspensas porque entendiam que era assim que podiam defender a escola (talvez dela mesma) e o direito (público e gratuito) de aprender. Um ano antes, Evelyn cumpria o ritual de formação universitária, apresentando um trabalho sobre cinema. Durante algum tempo, ela tinha se dedicado a entender os movimentos e as belezas de dois filmes, que eram, na verdade, cartas – ao mundo. O primeiro tinha sido feito por uma mulher da Casamance, no Senegal. O outro, por crianças Ikpeng, no Brasil. Enquanto ela agarrava palavra por palavra para dizer de suas descobertas sobre o modo como as crianças indígenas e a mulher africana mostravam suas aldeias ao mundo, a avó de Evelyn, que nunca esteve nem na escola, nem na universidade, nem no cinema, que foi educada nos terreiros sagrados do Recôncavo, ouvia tudo muito emocionada, com olhos brilhantes que cintilavam como o tecido de seu vestido alinhado. Naquele momento, em que estavam ali reunidas mulheres e crianças de muitas aldeias, a escola, ou a universidade, era também um quintal, um terreiro, um rio, um corpo, uma árvore, uma floresta. Hoje, preparamos uma festa para celebrar o desejo de aprender, para a qual são convidados os conhecimentos descobertos por Evelyn, com ajuda dos professores, e aqueles recolhidos e guardados por sua avó no solo do Recôncavo.
O VI CachoeiraDoc quer ser essa ocasião festiva onde o cinema – o documentário – assenta seu terreno de descobertas e aprendizagens, afirmando sua vocação para mobilizar e renovar desejos, acessando e entranhando-se na sabedoria dos corpos e dos espaços mais diversos e dispersos. E se o documentário pode ser festejado como um amplo campo de aprendizagem é porque seus limites institucionais não são jamais definidos por completo, é porque suas portas estão e estarão sempre escancaradas à vida – talvez seja justamente essa a lição que ele tenha para dar à escola, à universidade.
A ideia de que o documentário é território fértil de produção e difusão de conhecimento atravessa toda a programação desta sexta edição do CachoeiraDoc. A Mostra Competitiva Nacional convoca olhares e ouvidos para as múltiplas dimensões dos dilemas e das lutas do Brasil contemporâneo, bem como para o vigor dos corpos e dos espíritos – da floresta, dos índios, dos operários, dos mestres de matriz africana, dos jovens insurgentes e ressurgentes – que desafiam o país a aprender a ser outro.
Os espaços institucionais que têm buscado conexões inspiradoras entre educação e cinema estão representados no VI Ciclo de Conferências: o cinema e os desafios do real, que será dedicado ao Grupo Poéticas da Experiência da UFMG, cujas pesquisas têm prestado vigorosa contribuição ao campo do documentário contemporâneo; na Mostra Clássicos do Real, que renderá homenagem ao decano professor, cineasta e fundador da Jornada de Cinema da Bahia, Guido Araújo, pela sua fundamental contribuição para que os festivais de cinema sejam reconhecidos, neste estado, como importante ocasião de (re)formação; e nas Mostras Especiais – Mostra Soy Cine: os filmes da Escola Internacional de Cinema e TV de San Antonio de Los Baños, e Mostra Perspectivas do espaço e imersões sensoriais: os filmes do Laboratório de Etnografia Sensorial.
Se os filmes da escola de cinema de Cuba, a “escola de todos os mundos”, regidos pela filosofia do “aprender fazendo, fazer ensinando”, apontam para o cinema como uma prática de atualização da utopia e de convivência intercultural, as obras do Laboratório de Etnografia Sensorial, da Universidade de Harvard, lançam uma provocação perceptiva: ouvir e ver com outros olhos e ouvidos, olhos e ouvidos dos espaços, das carnes, das coisas e animais do mundo. Provocação esta que pode corresponder a uma interrogação desconcertante sobre o antropocentrismo, à necessária desconstrução da humanidade como centro do conhecimento.
Neste estágio geológico em que os impactos do homem sobre os sistemas ecológicos da Terra já são irreversíveis, época que se convencionou chamar de antropoceno, é urgente aprender com os índios: se há uma sede para o saber, ela só pode ser a própria Terra, em sua Natureza. E é por acreditar que a indianidade é um projeto de futuro para toda a humanidade que receberemos o povo Tupinambá, da Bahia, na sessão de abertura deste VI CachoeiraDoc para festejar com eles, o processo de retomada – retomada de suas terras, de seus encantados, de um modo de vida, enfim, que pode nos ensinar, entre muitas outras coisas, a sobreviver neste planeta.