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os filmes do Laboratório de Etnografia Sensorial

Texto de Amaranta Cesar

O Sensory Ethnography Lab – SEL (Laboratório de Etnografia Sensorial) é um espaço de experimentação da Universidade de Harvard que integra professores e estudantes de pós-gradução dos campos da antropologia, do cinema e das artes. Conforme sua autodefinição, o SEL promove inovadoras combinações entre estética e etnografia para chamar atenção “para as muitas dimensões do mundo, tanto animado quanto inanimado, que dificilmente podem ser perceptíveis por formulações verbais”.

A etnografia audiovisual praticada pelo grupo revela-se menos como instrumento de comunicação de conhecimentos pré-fabricados do que como uma corporal e intensa atividade de descoberta, capaz de provocar novos conhecimentos através das próprias circunstâncias de fatura dos filmes. O pressuposto comum do qual parecem partir as obras produzidas no ambiente do laboratório é o de que “o filme, mais do que qualquer outra forma de arte, tem o privilegio de usar a experiência para expressar a experiência”, nas palavras de seu diretor, Lucien-Castaign Taylor.

E é pela partilha de uma experiência, antes de tudo sensorial, que espectador e realizador são colocados pelos filmes aqui reunidos no mesmo compasso de descoberta. Seja em um navio de pesca industrial, no teleférico que leva a um templo hindu, em um subsolo que se transforma em mesquita em um bairro chinês de Nova Iorque ou em um complexo de reciclagem de lixo, a imersão sensorial no espaço – para a qual é fundamental o notável trabalho sonoro dos filmes – restaura a reciprocidade entre os espectadores, os sujeitos que filmam e também aqueles que são filmados.  Em maior ou menor grau de intensidade, em todas obras que conformam este conjunto, trata-se de re-associar não apenas o observado e observador (tarefa da etnografia de Jean Rouch, por exemplo), mas o observado, os observadores (os que fazem e os que recebem os filmes) e a matéria fenomenológica do mundo.

A imersão sensorial que dá vida aos filmes do Laboratório de Etnografia Sensorial reunidos nessa mostra não corresponde a uma exploração meramente plástica ou poética das práxis corporais e dos tecidos – cultural, político e histórico –  do mundo. Não há apenas descrição, abstração e observação; há reflexão e, mais do que isso, especulação. O que essa mostra sintética parece bem demonstrar é a construção de uma estética etnográfica que superou o olhar opositor da antropologia visual clássica através da maneira como se combina na matéria audiovisual talhada a sensualidade do olhar com a reflexão teórica não verbal. Tal combinação está intimamente associada ao trabalho de incorporação do espaço presente nos filmes. Nessas obras, os gestos de composição não se contentam em manejar corpo e /no espaço: o espaço torna-se corpo, para que no campo de experiência do espectador o corpo possa restituir as tensões, conexões e amplitudes do espaço.

Assim, através de perspectivas que se descolam dos sujeitos para (se) incorporar nos espaços – a caverna de reciclagem (Fluxo único), o monstro-navio de pesca (Leviatã), as cabines voadoras místicas (Manakamana), o porão sagrado (Na Broadway), o farol-seiva de planta (As Figuras Gravadas na Faca com a Seiva das Bananeiras), o trem-cavalo de ferro (O ministério das ferrovias)-, uma conjunção entre cultura, natureza e tecnologia é tecida, apontando para imbricamentos reveladores não apenas das interferências do capital e da modernidade nas cidades, nos corpos e nos modos de vida (como se observa em Na Boradway, Manakamana e O ministério das ferrovias), mas, principalmente, dos impactos desastrosos do antropoceno (termo cunhado pelo metereólogo Paul Crutzen que designa uma nova época geológica caracterizada pelo impacto irreversível da humanidade sobre os sistemas ecológicos do planeta) sobre a Terra (como sugerem provocadoramente as imagens e sons de Fluxo único e, sobretudo,  de Leviatã).

Assistir aos filmes do Laboratório de Etnografia Sensorial em seu conjunto pode ser uma experiência de desnaturalização da natureza, desautomatização das máquinas, descoisificação das coisas que talvez implique na salutar descentralização do homem. No limite, a provocação perceptiva feita por estes filmes – ouvir e ver com outros olhos e ouvidos, olhos e ouvidos dos espaços, das carnes, das coisas e animais do mundo – pode corresponder a uma interrogação desconcertante sobre o antropocentrismo: sua necessária desconstrução.

Filmes

O ministério das ferrovias / The Iron Ministry
EUA/China, 2014, 83 min.
De J.P. Sniadecki
Dia 3/9, às 14h

Filmado em mais de três anos nas ferrovias da China, The Iron Ministry  percorre os vastos interiores de um país em movimento: carne e metal, retinidos e chiados, luz e escuridão, linguagem e gestos. Uma partitura de viagens transformadas em uma só, para capturar as emoções e ansiedades das transformações tecnológicas e sociais. O filme imerge a audiência em relações fugazes e encontros difíceis entre homens e máquina neste que será em breve o maior sistema ferroviário do mundo.

Manakamana
EUA/Nepal, 2013, 118 min.
De Stephanie Spray e Pacho Velez
Dia 4/9, às 14h

No Nepal, peregrinos cumprem uma antiga jornada em destino a um templo, em uma vertiginosa viagem de teleférico. Manakamana concentra-se no interior da cabine deste moderno teleférico, acompanhando em tempo real onze viagens, e explicitando, assim, as interações entre os passageiros, a paisagem e este novo meio de transporte, bem como as relações entre tecnologia e espiritualidade. Através destes encontros, o filme abre uma surpreendente janela para a vida contemporânea do Nepal, propulsionada pela sua idiossincrática modernização.

Fluxo único / Single Stream
EUA, 2014, 23 min.
De Pawel Wojtasik, Toby Kim Lee e Ernst Karel
Dia 5/9, às 14h

Borrando o limite entre observação e abstração, Single Stream mergulha o espectador no fluxo fluído de um processo de tratamento de lixo, examinando as consequências materiais da nossa cultura do excesso. Dentro de um prédio cavernoso, um vasto complexo maquinário corre como uma engrenagem, organizando uma correnteza de vidro, metal, papel e plástico dispostos sobre cinturões que atravessam os espaços pontilhados por trabalhadores e suas fardas neon. Este complexo balé de homem, máquina e movimento produz sons e imagens consternantes, mas também belas e reveladoras.

Leviatã / Leviathan
França/Inglaterra/EUA, 2012, 87 min.
De Véréna Paravel e Lucien Castaing-Taylor
Dia 5/9, às 14h

Nas mesmas águas profundas onde Melville Pequod imaginou a caça a Moby Dick, Leviathan captura o colaborativo conflito entre homem, natureza e máquina. Filmado a bordo de um navio de pesca industrial, no Atlântico Norte, com doze pequenas câmeras – arremessadas ao mar, atadas aos cascos e superfícies da embarcação, passadas de pescadores para cineastas – o filme é um cósmico e impressionante retrato de um dos mais antigos empreendimentos humanos, a pesca em alto mar, em sua dimensão contemporânea e industrial.

As Figuras Gravadas na Faca com a Seiva das Bananeiras
EUA/Portugal, 2014, 16min.
De Joana Pimenta
Dia 7/9, às 19h30
O rodar de um farol desenha um círculo. No espaço dessa linha atravessa-se um arquivo de postais?enviados nos anos 60 e 70 entre a Ilha da Madeira e Moçambique. As Figuras Gravadas na Faca com a Seiva das Bananeiras circula entre uma ficção ancorada numa memória colonial e a ficção- científica.

Na Broadway / On Broadway
EUA, 2011, 62 min.
De Aryo Danusiri
Dia 7/9, às 19h30

Através do relato estrutural da transformação cultural de um subsolo de Manhattan em uma mesquita, o filme constrói uma “canção” dos momentos de transformação do espaço,  das identidades e crenças. Composto por seis longas tomadas fixas, On Broadway começa com uma conversa relaxada no cotidiano vazio de um porão. Depois, gradualmente, o espaço transforma-se em um evento – um evento de resistência. No final, trata-se de questionar as fronteiras entre o mundano e o espiritual, o político e o cotidiano.