728 x 90
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Iraque/França, 2015 334 min.

Medir a resiliência de um povo
Texto de Victor Guimarães, publicado originalmente (em espanhol) na cobertura do IV Festival Olhar de Cinema para a revista Desistfilm.
Tradução: Ana Rosa Marques

É extremamente difícil se referir a Homeland como um filme. Nomeá-lo assim é afirmar que essa existência pertenceria à mesma espécie ou categoria ontológica de um Jurassic World ou um filme como Soft in the Head de Nathan Silver (visto aqui no Olhar de Cinema). Certamente não é o caso. A obra monumental de Abbas Fahdel – e a experiência absolutamente inesquecível que é estar na frente da tela por pouco mais de cinco horas e meia – pertence a um conjunto muito limitado e preciso de obras da humanidade, entre as quais eu citaria Os Desastres da Guerra de Goya, Guernica de Picasso, Noite e Neblina de Resnais e A Oeste dos Trilhos de Wang Bing. O que une estas materialidades tão distintas não é apenas o dado de que sejam obras-primas ou até mesmo o fato de que todas tenham levado anos para se completar. Isso também conta, mas o que realmente conecta essas obras é o fato de que todas são figurações tão potentes, formalmente íntegras e irrepetíveis da aniquilação do homem pelo homem, que não é possível olhar para uma pintura, um filme ou um homem da mesma maneira depois de entrar em contato com elas.
Homeland é dividido em duas partes: antes e depois da invasão do Iraque pelos EUA em 2003 (o intervalo equivale ao momento dos bombardeios em Bagdá, que não vemos). Na primeira parte, o diretor filma de forma muito próxima sua numerosa família de classe média, enquanto seus entes queridos se preparam para o que está por vir. Os adultos compram lanternas e armazenam alimentos, enquanto as crianças se esmeram em cuidar do poço (faltará água e é necessário escavar o solo do jardim). Há apreensão e, especialmente, resiliência: ninguém se desespera, todos reagem com uma força inominável à guerra que se aproxima.
A imagem de Saddam Hussein é onipresente na televisão: em videoclipes dignos dos karaokês de Jia Zhangke, o ditador aparece como líder, herói, pai, divindade, estrela pop, imagem de proteção de tela. A família assiste TV e se cala, mas já é possível sentir a densidade do silêncio e imaginar o que se esconde por detrás dos olhares. O papel da televisão nos diários de Perlov ressoa nessas sequências, mas apontar uma referência cinematográfica é algo demasiado fútil aqui.
O homem com a câmera quase não faz perguntas, mas o olhar não é observacional: ele provoca as pessoas, prepara a cena com a mesma atenção que o torna pronto a se posicionar frente aos devires do real. Seu sobrinho Haidar – um menino de doze anos que se tornará protagonista e permanecerá para sempre em nossa memória – atira frutas do terraço para os seus colegas na rua e afirma: “assim não haverá mais frutas, tio”, como se rejeitasse o jogo proposto. Apesar do horror da situação, a mise en scène é divertida, não se deixa capturar pela tristeza. Há diálogos apreensivos, mas há também as bonitas luzes do aniversário no terraço e as cores de cada prato no almoço dominical. Abbas Fahdel aposta na alegria com o mesmo ímpeto com que rejeita o sentimentalismo: com uma coerência formal impecável, que atravessa todas as escolhas (não há sequer uma nota musical na trilha sonora que seja externa à cena).

Não há desespero porque a guerra de 1991 não terminou para o povo iraquiano. O embargo econômico faz o seu trabalho lento de destruição há duas décadas e todo o país é um amontoado de ruínas, como aquelas na belíssima cidade de Hit, onde as crianças brincam com armas de plástico. Sobre as ruínas tudo se torna alegoria e talvez não haja um momento tão forte como aquele em que o menino começa a trocar a fita isolante da janela (para evitar que se parta e os pedaços de vidro voem pela casa). A da última guerra ainda está lá e a fita torna-se uma metáfora de um país que nunca se recuperou da última catástrofe e já tem de enfrentar a próxima.
A convivência da família e os jogos infantis são cálidos e cheios de paixão, mas a encenação e a montagem são duras, secas, implacáveis. Em toda a primeira parte, o trabalho da câmera parece ser o de um instrumento que tem a ver com a física: medir a resiliência das janelas, das paredes, das mulheres, dos homens e das crianças. A dureza é refletida em uma escolha surpreendente e assombrosa: num dado momento, ainda antes do intervalo, um letreiro informa que o protagonista morrerá em poucos anos, antes de completar os quinze.
É então que percebemos que tudo o que vemos se trata de uma melancólica elegia. O ritmo da montagem torna-se mais lento, como se fosse necessário demorar-se na cor de cada refeição, em cada canto da casa, em cada rosto, antes que tudo desapareça para sempre. A vida pulsa e acompanhamos sua respiração na tela, mas o documentário se aproxima do seu limite mais extremo: filmar a morte já é possível em grande medida porque os personagens já estão mortos, já se tornaram fantasmas. A sombra da morte é invisível, mas se projeta inevitavelmente sobre o rosto do menino que sorri e zomba da irmã.
Mesmo o que não se mostra é extraordinário. O tempo sem imagens do intervalo entre uma parte e a outra não poderia ser mais afirmativo. As imagens da guerra já vimos na TV e sabemos que elas são um acúmulo de clichês e que se assemelham ao videogame. Imaginar o horror não é difícil. Já foi filmado inúmeras vezes e sempre tem gosto de sangue e cheiro de queimado. Não é preciso mostrar uma vez mais o que a gigantesca máquina de guerra norte-americana é capaz de fazer: para isso existe o jornalismo e as séries de televisão no pior dos casos, e no melhor, os filmes de Brian de Palma, Kathryn Bigelow e Clint Eastwood. Mas mesmo The Hurt Locker e American Sniper parecem frívolos diante de Homeland.

A segunda parte começa e tudo muda depois dessa elipse, uma das mais fortes da história do cinema. Os ocupantes norte-americanos estão em toda parte e o que era uma ponte que levava à casa do avô se tornou “território militar”. O estado de exceção é o novo reino. Os soldados podem tudo e nada acontece: assediam, perseguem, matam e o direito e a lei são uma piada. O que era uma estação de rádio popular tornou-se um monte de ferro e concreto e a convenção internacional que proíbe o ataque contra as rádios é mais uma nota de rodapé esquecida pela história.
O menino que sorria e brincava contente com seus primos tornou-se um adulto precoce. Seu olhar é agora sério e cheio de uma revolta profunda. Os bate-papos alegres com seus irmãos deram lugar a uma inimaginável discussão acalorada com um traficante de armas fiel a Saddam. Atirar frutas na rua faz parte de um passado distante; o garoto agora se rebela contra os pais porque não pode disparar a metralhadora para comemorar a morte dos filhos do ditador com seus vizinhos. O que era ternura agora é ódio e sangue nos olhos.
A forma também muda radicalmente. O que era registro do cotidiano da família torna-se reportagem e peregrinação pelas ruas, bairros, novas ruínas que substituem as antigas. A observação dá lugar à entrevista e à reivindicação inflamada. A câmera que era paciente e delicada se converte em megafone multitudinário: mal chega a um bairro, as pessoas se aglomeram em torno do cineasta, prontas a disparar mais um testemunho sombrio sobre as ações dos militares. Há desaparecidos, vizinhanças  inteiras destruídas por mísseis, mulheres e homens que choram e gritam por alguma ajuda. O inferno é cinza, sujo e tem a cor da poeira do deserto. Mas há também aqueles inúmeros retratos de crianças, adultos e velhos iraquianos que nos olham  com um sorriso e preenchem toda a duração do Homeland. O povo é o que continua a surgir em cada olhar.
“A vida era melhor antes do petróleo”, diz um deles. Um comunista lembra-se que Saddam converteu o povo iraquiano em uma multidão de esquizofrênicos: a censura fazia com que a pessoa fosse uma no trabalho e outra em casa; uma pessoa por fora e outra por dentro. O irmão do cineasta explica que a guerra criou um enorme exército de saqueadores, sempre dispostos a agir nesse enorme caos que dá lugar à violência cotidiana. E se tudo mudou é apenas para continuar igual: a ameaça aos adversários do governo anterior persiste na revolta desse homem pobre que recolhe lixo em uma carreta e se pergunta por que os soldados sempre lhe apontam as armas gratuitamente; as valas comuns da ditadura perduram no tiro anônimo na rua, matando um jovem que levava uma peça sobressalente para ajudar o vizinho e nunca será investigado.
A desesperança é brutal, mas as piadas ainda estão presentes: todos se burlam da professora integrante do partido Baath que pediu aos alunos para rasgarem “com respeito” a foto de Saddam contida no livro didático. Esses homens e mulheres (os que ficaram) encontram energia onde há apenas destruição e a resiliência desse povo parece eterna. Mas a vida do menino, a vida única e irrepetível desse menino, não é. Nós já sabíamos, mas nem mesmo a integridade estética inesgotável de Abbas Fahdel tinha nos preparado para esse momento da noite em que se escuta um disparo, um grito e um corte seco nos leva a uma fotografia mortuária na parede. A essa fotografia e ao silêncio mais denso que experimentei na vida ao sair de uma sala de cinema. Depois das cinco horas e meia de Homeland, os mortos-vivos somos nós.
Homeland: Iraq Year Zero / Terra natal : Iraque ano zero

Iraque/França, 2015 334 min.
De  Abbas Fahdel
Dia 6/9, às 13h30 e às 16h30

Crônicas do cotidiano no Iraque antes e depois da invasão Norte-americana.

Parte I: Antes da queda (160 min.)

Dia 6/9, às 13h30

Durante vários meses o diretor filmou um grupo de iraquianos, na sua maioria membros de sua própria família, em suas expectativas sobre a guerra. Essa primeira parte do filme se encerra com o início dos ataques norte-americanos à Bagdá.

Parte II: Após a batalha (174 min.)

Dia 6/9, às 16h30

Os americanos invadem o Iraque, e o filme mostra as consequências dessa invasão no cotidiano dos personagens.