– por Maria Bogado –

Mães do Derick (2020), de Dê Kelm, apresenta o cotidiano de Thammy, Bruna, Chiva e Ana, mães de uma criança de nove anos. O filme se constitui a partir de uma imbricação incomum entre diferentes registros. Sob um solo de documentário observacional, misturam-se imagens amadoras realizadas pelas crianças e clipes nos quais as personagens principais apresentam suas canções e protagonizam gestos coreografados. Em todos esses modos de composição, a cumplicidade entre quem filma e quem é filmada é patente, x diretorx Dê se aproxima do universo registrado após anos de amizade com as envolvidas. 

Pouquíssimo se sabe acerca da comunidade que circunda a moradia em que vivem ou das relações de trabalho e vizinhança que extrapolam a família. A construção de uma casa em um terreno ocupado é o fio condutor da narrativa, permeada por situações cotidianas e, em especial, pelo compartilhamento de afetos entre as mães e o filho. Muito da biografia dessas mães conhecemos pelas letras de suas músicas. Raramente aparece qualquer tensão que desestabilize o grupo. Essa placidez diferencia radicalmente Maes de Derick de um outro filme que se debruça sobre um grupo de mulheres também apresentado neste festival, o É sim de verdade, que tem no conflito o principal motor de sua dramaturgia. 

Signos tradicionalmente atrelados ao feminino ou às militâncias feministas permeiam os espaços e são reforçados nos clipes, quando se pretende, segundo uma das letras, “dançar na cara do patriarcado”. Os ícones, como imagens de flores repetidas com insistência, ou representações de bruxas, reforçam o caráter coeso e identificável do grupo. Sabemos que o capitalismo tem nas tecnologias de produção e fixação das identidades de gênero, sexualidade, raça e nacionalidade um mecanismo fundamental para sustentar a divisão colonial do trabalho. Produz-se o Outro racial, para permitir a escravização, produz-se o Outro de gênero para permitir a subordinação, produz-se o Outro estrangeiro para permitir a precarização de mão de obra e assim por diante… Essas marcas identitárias impostas pelas elites perpetuam a subalternização ou extermínio dos corpos considerados minoritários, estabelecendo quem pode explorar e quem pode ser explorado.* Portanto, tomar para si a capacidade de construir sua própria identidade e torná-la visível é, sem dúvidas, uma potência política incontornável. Contudo, como desfazer as identidades hegemônicas sem reproduzir a mesma lógica de produção que moldou as opressões? É importante, aqui, atentar ao sempre atual pensamento de Audre Lorde:

Aquelas de nós que estão fora do círculo do que essa sociedade define como mulheres aceitáveis, aquelas de nós que foram forjadas nos caldeirões da diferença – aquelas de nós que somos pobres, que somos lésbicas, que somos Negras, que somos velhas – sabemos que sobrevivência não é uma habilidade acadêmica. É aprender a estar sozinha, impopular e às vezes insultada, e a fazer causa comum com aquelas outras identificadas como externas às estruturas, para definir e buscar um mundo no qual todas nós possamos florescer. É aprender a tomar nossas diferenças e torná-las forças. Pois as ferramentas do senhor nunca vão desmantelar a casa-grande. Elas podem nos permitir a temporariamente vencê-lo no seu próprio jogo, mas elas nunca nos permitirão trazer à tona mudança genuína. ** 

Nas sequências dos clipes, o filme se situa na luz clariverende da representação com uma objetividade inequívoca. Para parir outros mundos talvez seja necessário se desviar dos modos de organização do visível e de ordenação do discurso próprios da lógica publicitária dos ícones e palavras de ordem. Mudar as estratégias de atuação, jogar com outras “ferramentas”. Talvez seja mais fértil virar a cara diante dos olhos e ouvidos do patriarcado, viciados no horizonte restrito e imediato do cognoscível. Em “A plantação cognitiva”, a artista e pensadora Jota Mombaça lembra da importância da opacidade como chave primordial para a construção de um terreno ético “à sombra dos regimes de representação e registros de representatividade”***. 

No entanto, o longa também revela outras possibilidades de relação. Nas imagens produzidas por Derick e por uma amigo da mesma idade, apresenta-se uma câmera errante totalmente implicada em sua presença no espaço e em relação com os corpos que a circunda. É uma câmera que não filma para mostrar algo que já saberia de antemão, mas que usa a câmera em sua função mais primária: a de dar a ver. É no ato de filmar que as crianças descobrem o que e como enquadrar. Nos seus movimentos imprecisos, acompanhamos também as falhas, borrões e composições estranhas que dificultam a possibilidade de identificar os rostos e espaços. O que fica de mais forte é a forma como se aproximam ou se distanciam, em suma, a ética propriamente relacional da filmagem. 

Enquanto as mães constroem a casa, por alguns instantes, Derick se equilibra em tábuas de madeira e canta a ciranda: “minha jangada vai sair pro mar, vou trabalhar”. A imagem da jangada, embarcação frágil e sempre um tanto aberta à deriva, é de uma fecundidade ímpar para entender uma ética da experiência que se molda nas mãos das crianças. As jangadas tem estruturas deliberadamente mal amarradas. O caráter frouxo, ao permitir que um pouco de água passe entre as tábuas, faz com que a embarcação se flexibilize sem quebrar no atravessamento de grandes ondas.**** Parece que os planos feitos pelas crianças, com as fendas de opacidade que nos deixam, reservam um espaço para o espectador permeá-los. Se nos clipes, os ícones apresentam signos já pré-formados, aos quais se adere ou não, essas imagens apresentam-se por outra lógica. Como a jangada que tem sua forma modificada na passagem das águas, as imagens das crianças parecem à espera da espectadora, nos convidando a uma experiência que só se efetua com a passagem de nosso olhar. O cinema não como ferramenta de representação de um grupo, mas como ferramenta de mediação entre a comunidade que se funda no ato de filmar e as espectadoras por vir. 

Notas:

* FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Editora Elefante, 2017.

** LORDE, Audre. As ferramentas do mestre nunca vão desmantelar a casa-grande. Tradução de Tatiana Nascimento, do artigo The Master’s Tools Will Never Dismantle the Master’s House, in: Lorde, Audre. Sister outsider: essays and speeches. New York: The Crossing Press Feminist Series, 1984. p. 110–113. Disponível em: https://medium.com/@paulllynda/as-ferramentas-do-mestre-nunca-v%C3%A3o-desmantelar-a-casa-grande-audre-lorde-2da432d4b93a Acesso em 20 dez 2020. 

*** MOMBAÇA, Jota. A plantação cognitiva. São Paulo: Publicações MASP/Afterall, 2020.

**** Essa reflexão em torno da jangada é inspirada em elaborações do poeta, cineasta e pensador francês Fernand Deligny.