– por Glênis Cardoso –

“Oyinbo” é como ouvimos a diretora ser chamada por crianças nigerianas. Ela continua: “Oyinbo. Branca. Branca na Nigéria, negra no Brasil. Eu os reconheço, eles não me reconhecem.” Adentramos, assim, as águas em Lagos num barco em que uma mulher nigeriana negra rema, se afastando do cais. Estamos adentrando Aline também, sua vivência diaspórica, sua busca por raízes, a opacidade dessa experiência.

Água é vida. Lagos, Rio de Janeiro, Cachoeira. Os espelhos refletem o céu, refletem a água, a água que reflete o céu, a água que une e separa Nigéria e Brasil, a diretora de seus ancestrais. A repetição e o eco dos nomes das cidades se confundem até que não saibamos mais o que é Lagos, o que é Cachoeira, o que é Rio. Aline Motta faz um movimento delicado e poético de busca por origens, conexões e misturas através das imagens de barcos, pontes e espelhos nas três cidades que têm água no próprio nome. Água é vida, mas é turva, às vezes indecifrável. A imagem de um barco que carrega um corpo negro tem uma carga de significados imensa, são elementos que se relacionam com um trauma profundo e coletivo e que, entretanto, não se resume apenas à violência. Água é vida. Ela separa o caminho, ela é o caminho. 

Assistindo ao filme, lembrei de Anne Carson em seu livro Plainwater. Ela escreve: “É um segredo aberto entre peregrinos e outros teóricos dessa vida viajante que você se vicia no horizonte. Existe um momentum no andar, na fome, nas estradas, na cumbuca vazia dos pensamentos, que é mais luxuoso — mais civilizado — que qualquer cidade. Até o mais antigo Guia do Peregrino, publicado em 1130 A.C., contém observações que tocam no dilema do peregrino que chega no seu destino e não consegue parar” (tradução nossa).

Chegar a um destino nunca é tão satisfatório quanto saber que você está indo ao seu encontro. Alcançá-lo é encarar que o lugar sonhado ainda é um não-lugar, um não-pertencimento, um desconforto que nunca será superado completamente. Em Lagos, Aline fala sobre ser observada o tempo todo, notada por sua diferença. Existe uma tristeza em ser vista que fala sobre a distância entre ela e as pessoas ali. E a invisibilidade não é menos triste. É possível ser vista num movimento de aproximação ao invés de distanciamento? Os espelhos no filme refletem pedaços da paisagem que não podemos ver.

Encontramos um terreno baldio onde se esperava encontrar uma casa. Estamos na Nigéria e lembramos do Brasil. Estamos no Brasil e sonhamos com a Nigéria. Apontamos um espelho para Lagos e vemos Cachoeira. Apontamos um espelho para o Rio e vemos Lagos. Ou uma ponte, que une e separa dois pontos que nunca podemos ver. Ou o céu, que é o mesmo lá e cá. A ponte, o barco, a água, o espelho, o céu. Imagens que comportam existências limiares, o estar aqui e estar lá, o pertencer e o não pertencer. Mas há uma fita azul que une tudo. Na familiaridade do estranho e no estranhamento do familiar é possível encontrar ar suficiente para se respirar e existir. Indo atrás da paisagem que altera sua paisagem interior, Aline também altera os lugares por onde passa. Ela carrega consigo ventos, fogo, ela é marcada e marca de volta. A fita azul está na água, está no vento, está em volta de um pescoço negro, há uma chama na água. Aline olha a paisagem, a paisagem olha de volta. Há, enfim, um reconhecimento.