– por Lígia Franco –
No ano de 2015 em Goiás, estudantes ocuparam as escolas estaduais como medida para impedir o processo de terceirização da gestão dessas escolas para o setor privado: empresas chamadas de Organizações Sociais (OS). Um projeto do governo do estado que caminha em direção à práticas neoliberais e obscurantistas, de sucateamento e privatizações de instituições públicas. Práticas que vêm se alastrando por todo território nacional.
O curta de Lara Damiane de 2019 faz o percurso de voltar a esse momento das ocupações, através de um dispositivo proposto para alguns de seus colegas que fizeram parte do movimento de ocupação do colégio Lyceu de Goiânia: assistir juntos às imagens de arquivo feitas naquele período – 2015 – durante a madrugada dentro da escola, num ato metalinguístico do próprio cinema que apresenta suas possibilidades de desdobramentos. As imagens de arquivo que o grupo de alunos vê, também nos são mostradas ao longo do curta. No momento em que a exibição está acontecendo, as luzes se acendem e a sessão é suspensa, mas isso não impede que o curta e o gesto político de trazer à vida essas memórias de luta e a força coletiva implicadas ali, aconteçam.
Na busca de trazer esses processos de resistência para o presente, o filme não somente vai para esse passado recente das ocupações das escolas estaduais, como também traz uma importante informação que remonta aos anos da ditadura militar, foi um estudante desse colégio, Marco Antônio, o mais jovem desaparecido político sob o regime. Informação que demonstra a historicidade da luta contra as forças do estado opressor, travada há muito tempo.
As memórias estão vivas não apenas nas imagens registradas ao longo dos momentos de ocupação, mas também nas narrativas que os estudantes contam daquele período. São eles, os estudantes, a própria memória quando comentam por exemplo quando foram presos pela PM. Relatos intercalados com as imagens de arquivo que vêm pra reforçar mais uma vez o tamanho da violência exercida pelo estado, a polícia atacando adolescentes que estão ali pra reivindicar uma educação pública de qualidade. A memória também está presente nos muros do colégio, pixos que dizem “viva as ocupações” não deixam esquecer que o local foi, e ainda é, palco de embates. No ato de potencializar diferentes tempos da ação política, trechos do filme “A Fraude” (1968) de Jocelan Melquiades de Jesus, artista goiano e pioneiro na produção cinematográfica no estado, cujo tema trata justamente da insubordinação de estudantes; são trazidos à tela pela montagem que passeia por todos esses recortes de memórias, que se cruzam no filme em múltiplas camadas de sons, narração, relatos, imagens de arquivo, trechos de filme. Recortes agregados de forma semelhante aos nossos processos de memoração: uma lembrança puxando a outra e as sobreposições entre elas, que acabam por reconstruir os fatos de maneira mais sólida. Os elementos da mobilização estudantil, versos musicados, barulho, jogral, a tomada das chaves e cadeados da escola, tambores e chocalhos improvisados, as carteiras que viram escudos, bandeiras hasteadas, protestos que fecham as ruas debaixo da chuva, são parte da materialidade simbólica dessas memórias, cenas que não somente relembram das ocupações num nível mais racional, mas que também contêm em si as sensações físicas, corporais e emocionais presentes nos atos políticos dos estudantes secundaristas.
Se hoje a esperança é pouca, é buscando nos exemplos do passado e na coletividade que se encontra a força pra continuar lutando por direitos que seguem sofrendo os mais diversos ataques. São filmes como “Quando era Primavera” que fazem o gesto de salvaguardar os processos de luta, que se tornam fonte de inspiração para as gerações seguintes.