– por Lucas Menezes –
O meu primeiro encontro com o filme, deve ter sido em setembro ou outubro, quando ele estava disponível no youtube e um amigo me indicou a ver, ao saber do meu gosto por filmes-ensaio e cinema de autorrepresentação. Assumo que foi uma das experiências mais desconcertantes que já tive ao ver um filme, e naquele momento, por mais que quisesse escrever algo, não consegui. Precisava de tempo e um segundo encontro com a obra para ao menos tentar dar conta de elaborar a minha experiência.
O filme ter como nome “Cinema Contemporâneo”, me provoca nesse processo de escrita a posição de utilizar esse nome em dois sentidos: como substantivo, ao me referir ao filme em questão; e também como adjetivo, em que estarei me referindo a uma produção contemporânea de cinema.
O Cinema Contemporâneo (adjetivo) pode ser muita coisa, e defini-lo é uma tarefa árdua, muito pela dificuldade de não conseguirmos fugir do contemporâneo como algo do nosso tempo. Nesse sentido, construções e relações da contemporaneidade podem possibilitar a existência de uma obra, e mesmo sem encontrar respostas muito concretas do como isso ocorre, posso observar algumas tendências que ganham força na forma com que estamos fazendo e pensando o cinema.
Dentro do circuito de festivais de curta-metragem, tenho percebido a constância no aparecimento de algumas obras que buscam alternativas à transparência (aquela que nega a opacidade) tão comum ao cinema ficcional e a um olhar do cinema documental totalmente focado na representação do “outro”. Abrindo espaço para um cinema do íntimo, de uma voz que escolhe falar de si mesmo (ou explicitamente a partir de si).
Esse tipo de realização se fez bastante presente na programação da atual edição do Cachoeira Doc, a exemplo de Vander (2019) de Bárbara Carmo, Formatura (2020) de Caio Franco, Notícias de São Paulo (2019) de Priscila Nascimento, Michele de Michele Mesma: Narrativas de uma Mulher Sertaneja (2019) de Michele Menezes, entre outras obras que facilmente entram no grupo de filmes descrito Cinema Contemporâneo (substantivo).
Levando isso em consideração, me chama bastante atenção que o filme de Felipe André Silva comece falando desse grupo de filmes, como uma forma que possivelmente tenha alguns problemas, problemas estes que não foram citados, mas que podemos discuti-los aqui.
Acredito que se expor e fazer um filme a partir de uma experiência pode ser uma tarefa complicada, em uma contemporaneidade que o privado muitas vezes já se encontra tão público e tão manipulável às construções de identidades hegemônicas. Me pergunto como um filme em primeira pessoa pode experimentar uma outra forma de projetar a experiência privada, ou ser conivente com um discurso egocêntrico e de um eu espetacularizado.
Esses filmes, também podem esbarrar nos limites da experiência de quem o faz. Essa que por um lado, vai se mostrar como um elemento singularizante, por outro corre o risco de entrar em um lugar de incontestabilidade a partir do argumento “da minha experiência”, em que a natureza estética da obra se confunde com as vivencias e processos que conduziram a feitura do filme.
Em contrapartida, mesmo que consciente da fragilidade dos lugares que percorre, parece que Cinema Contemporâneo (substantivo) se rende a sua forma, como algo possível e necessário, já que segundo o narrador, “não há ninguém mais que possa contar a minha história”.
Mas isso também nos provoca a questionar “quem nos conta essa história?”; e “Quem é essa primeira pessoa?” (assim como o filme também se questiona), já que o curta-metragem parte da autoria de Felipe André Silva, sendo mediado pela narração de Gustavo Patriota. Nesse caso, o quanto de Gustavo escapa ao discurso do filme, ao corporificar na sua voz a fala de Felipe André?
No fim das contas, talvez essa história seja mesmo contada pelo dispositivo, como o filme vai concluir, mas ao mesmo tempo, este nos desafia a pensar nos seus próprios limites.
Após discorrer sobre o fenômeno dos documentários em primeira pessoa, o filme vai se debruçar em uma fotografia que se apresenta no filme de forma fragmentada. Foto esta que mostra um grupo de homens com o rosto borrado, que abusaram de uma criança que também aparece na foto, sendo esse, o único rosto que nos é revelado.
Em um primeiro momento, ao ver essa foto fragmentada, me lembrei de outras obras que também fizeram essa escolha estética, a exemplo de Je vous salue, Sarajevo (1993) de Jean-Luc Godard, ou até mais recentemente ao filme, Travessia (2017) de Safira Moreira. O meu espanto, foi ver que, diferentemente dessas outras obras, os fragmentos apresentados no filme de forma simultânea ao relato de abusos de diversas ordens, não se juntam e não revelam a fotografia na sua totalidade, mas ao mesmo tempo, talvez porque nossos traumas também não possam ser sintetizados e a elaboração destes precise se dar de forma errante e fragmentada.
E aqui faço a minha defesa dos filmes em primeira pessoa, já que acredito que pensar em Cinema Contemporâneo (substantivo) apenas do ponto de vista da narrativa, é reduzir o filme ao lugar mais previsível que tradicionalmente esteve colocado para a linguagem cinematográfica, e nesse sentido, quero acreditar no cinema como lugar para a elaboração de si. Elaboração que pode ter diversos gatilhos, mas fazer um filme não é colocar pra fora conteúdos reprimidos que muitas vezes só poderão ser externalizados a partir da relação com o dispositivo fílmico?
Às vezes faço algumas suposições em relação aos cineastas que gosto. Olho por exemplo para Jonas Mekas e fico imaginando como filmar o cotidiano em um novo continente após fugir de um campo de concentração, pode ter sido um mecanismo de sobrevivência. Também penso em filmes como Em seus braços (1989) e Céu, Vento, Fogo, Água, Terra (2001), e tento imaginar a importância que esses filmes tiveram na formação de identidade da realizadora Naomi Kawase, como órfã, que estava em busca de seu pai nessas obras.
Hoje penso em Cinema Contemporâneo (substantivo) e não deixo de pensar nas possíveis relações que esse filme pode ter com o cinema contemporâneo (adjetivo), dentro de muitas ressignificações e atribuições dadas ao que pode ser fazer cinema nessa contemporaneidade. Nesse contexto, vejo o filme de Felipe André Silva como um lugar de eco para uma voz que precisava ser ouvida, reivindicando o território do fazer fílmico, como um ato de coragem.