– por Alessandra Brito –
A Cristina Amaral falou em uma das muitas conversas que tive a alegria de ouvi-la que sonhar é um direito humano. Tenho me embriagado dessa palavra SONHO. Ailton Krenak e Beatriz Nascimento também falam do sonho, como uma dimensão de conhecimento, uma epistemologia. Sonhei intensamente com o mar nestes tempos, profundos mergulhos.
Agora envolta nas escritas, me lembrei que em 2019, eu planejei a ida ao Cachoeira Doc (planejar é tipo um sonho que a gente anota na agenda e organiza). Lá nas linhas de maio estava escrito Cachoeira Doc e Vale do Pati. Seriam duas travessias em maio, uma eu guardei para o futuro, a outra agora começa. A viagem será no tempo, na terra e na água. Três travessias assim como são três as margens do rio, como nos assegura Guimarães Rosa.
Viajar é com tudo – corpo, alma, coração – nem sempre as cheganças estão sincronizadas, às vezes o pé chega primeiro que o coração, ou o contrário. Escolhi escrever como seria possível, diante do tempo, e das coisas e de tudo que tem parecido impossível. O texto se dá como excesso e brevidade, difuso, espelho embaçado, mas cachoeira à vista.
o dia primeiro, o hoje.
Com o gosto da chegada vivo na boca, este exercício de escrita passará pelo meu percurso no festival, aqui neste dia “hoje” a escrita será junto de (Outros) Fundamentos, Irum Orí e O Mundo Preto Tem Mais Vida. Em seguida, seguiremos os dias.
duas inquietações a partir de (Outros) Fundamentos
A primeira coisa que me chama atenção nos (Outros) Fundamentos (2019) é a profusão de reflexos. São águas, muitas margens, espelhos d’água e espelhos fora d’água. Na multiplicidade de reflexos: céu, mãos, faces, água, pontes, barcos.
Uma lembrança: aquelas histórias que nos contavam na escola de que os povos originários teriam trocado ouro por espelhos e outras quinquilharias oferecidas pelos colonialistas. Uma narrativa comum e que se presta a reforçar um imaginário desumanizante sobre os povos indígenas do Brasil.
Acho que toda procura é fortemente permeada pela busca de si. Mas como fazer dessa busca algo que não seja um desejo de reflexo? Lembrando também que é a força da luz do reflexo que dificulta ver o visível e até mesmo o invisível.
Eu me vejo neles, eles não se vêem em mim. […] Se ao menos soubessem, se soubessem que estavam num navio comigo, quando me obrigaram a partir. Eles estavam no avião comigo, quando eu voltei, com 200 anos de diferença. Talvez eles não saibam que ninguém ficou mais branco no Brasil por amor. Embranquecer ou desaparecer.
[…]Eu espero um tipo de conexão que não me afasta e sim me acolhe. Se eles realmente pudessem me ver, eles poderiam se ver?
Quando Antônio Bispo dos Santos formula as concepções sobre a confluência e transfluência que possibilitou a sobrevivência, ou melhor, a vida do povos negros no Brasil, ele também fala das águas como elos (rios que se encontram com os oceanos seja trilhando sobre a terra ou evaporando para chegar às nuvens: o conhecimento é como as águas). Estando as águas em confluência, em ligação, em uma conversa que não podemos escutar, a operação de aproximação pelo corte da montagem seria uma sobreposição?
A palavra fundamento. O sentido, do verbo sentir, atribuído a ela diz de um território, um modo de conhecer um mundo.
Na capoeira dizemos fundamento. Aprendemos com nosso mestre, que aprendeu com o dele e assim segue. Fundamento, segredo, mandinga, respeito. Mestre Pastinha disse: “A capoeira exige um certo misticismo, lealdade com os companheiros de ‘jogo’ e absoluta obediência às regras que o presidem. Acreditamos que estas recomendações são os fundamentos da capoeira.”
Em (Outros) Fundamentos, empreender a busca, desejar algo que remeta a um retorno mobiliza desejos e riscos. Em meio aos reflexos, há um lampejo de abertura para deixar os ruídos de uma expectativa não cumprida permear a narrativa, essa exposição das tensões dá força ao filme. Mas como no mito de Narciso o espelho seduz, e como cantou Caetano a relação com o que não é espelho não é harmoniosa e nos aproxima do risco de atualizações da dimensão d’Outros que o projeto colonial tão fortemente empreendeu e empreende.
sensações a respeito de Irun Orí
um dia antigo dentro do hoje
Cabelo sendo trançado, o tempo de espera, o sono que vem chegando, chegando. O pescoço querendo encostar. E a mãe que diz: firma a cabeça aí, está quase terminando. Depois da espera o cabelo sempre preso – num coque, num rabo de cavalo ou em penteados nos quais cada fio ficava no seu devido lugar, bem juntinho sem um arrupeio – se solta. E a gente balança as tranças, e sente a sensação da brisa que criamos em torno de nossa cabeça. Aquela pequena ventaniazinha. No frame, eu vejo, ouço e sinto esse vento, ouço. O filme Irun Orí (2020) é um cafuné no cabelo.
um dia que é sempre
“A ideia de modernidade é uma ideia de morte, mas a morte branca é ruim, porque a morte preta é diferente. Na morte preta a gente consegue entender essas outras relações, consegue entender o contato com outros mundos, mas a morte branca é só morte.”
Zica Pires
O Mundo Preto Tem mais Vida (2018) se abre para uma profusão de arquivos, imagens institucionais que reclamam uma ideia de modernização/morte; as pinturas de Debret que ilustram narrativas sobre escravização; manchetes de jornal que ocupam a tela expondo a ideia de lucro que se constrói face a destruição de vidas. E as imagens do quilombo Santa Rosa dos Pretos, em Itapecurum Mirim no Maranhão: o terreiro, a fé, um menino que corre pelo campo, a pipa no céu, crianças brincando e os testemunhos de uma história em curso.
É preciso empreender uma rememoração, calcada em todas as temporalidades, para mencionar as atualizações da violência escravagista empreendida pelo Estado Brasileiro. A memória que se coloca em enfrentamento, diante de uma luta ainda em curso, em defesa do território e de um modo de vida – que tem mais vida. Testemunho, pois aqui é preciso narrar, é preciso a palavra dita, aquecida pelo hálito, como nos ensina Leda Maria Martins.
“Quem tem que dizer quem nós somos, somos nós” Anacleta Pires da Silva
Notas de uma cena que não será possível esquecer:
Maria Dalva Pires Belfort usando um vestido roxo com detalhes em branco, um turbante branco na cabeça sentada observa o trem que passa na estrada, sob uma ponte feita em cima de um igarapé. Depois observa de pé a água ali, aprisionada pela estrutura de concreto. Em seguida, ela canta para igarapé, o filho perdido da Mãe d’Água.
um dia antes do hoje
Tem uma cena que eu nunca vi, mas eu imaginei muitas vezes. Talvez ela seja umas das minhas primeiras sensações-cinema, uma imagem que a gente quase pode tocar de tão de perto que acontece. Feito falar: parece filme! Para algo que você vê ali do outro lado da rua em que morou a vida inteira.
Na cena um homem, trabalhador rural, trajando uma calça jeans com uns remendos nas pernas, um chapéu, uma camisa do São Paulo branca, desce do trator amarelo, pega um embrulho cuidadosamente guardado e vai até a sombra de um árvore do cerrado. É hora do almoço, a marmita feita antes do sol nascer é degustada, depois um pedaço de rapadura e água, talvez um cochilo com chapéu cobrindo os olhos.
A cena também não está no filme Sob a sombra da palmeira (2020), mas Chheangly Yeng ao descrever a vida do seu pai Chea Yeng, um trabalhador rural de Phnom Penh, capital do Camboja, nos conta de um almoço assim, no intervalo da lida com a plantação.
Ali, com um plano que nos deixa embaixo da palmeira, miramos a paisagem que ele observou junto do pai num dia antigo em que ele acompanhou seu almoço. Podemos também observar as mudanças no lugar que ele se põe a descrever: a terra está abandonada e não há mais a plantação de arroz. Das imagens e relatos emergem a dureza da lida no campo, o esforço para que o filho pudesse estudar, e a insistência da palmeira que segue crescendo mesmo agora que o pai já não se senta à sua sombra. E a gente fica ali, embaixo da árvore, ouvindo a paisagem, vendo o vento.
Dentro dessa perspectiva sensível, o filme também se alça para uma discussão muito cuidadosa em torno do trabalho. A obra se aproxima dessa temática se valendo da imagem que não está no campo – não vemos Chea Yeng na lida com a terra e com o plantio, não vemos suas mãos calejadas, sua face cansada ou sua hora de almoço sob à sombra da palmeira, mas ali na materialidade da imagem sabemos a continuidade da ausência de um pai com uma vida consumida em muito trabalho.
o dia do levante
Tudo em Acervo ZUMVI – O Levante da Memória (2020) se espraia na minha travessia pelo Cachoeira. É primoroso o modo como o filme de Iris de Oliveira se assenta. Começa pelo quilombo. O fotográfo Lázaro Roberto, o “Lente Negra”, revisita Ilha de Maré, Comunidade Quilombola de Praia Grande, em Salvador, para conversar com Cláudionor Souza, mestre balaiero. Falam de balaios, do tempo e de lembranças.
A montagem une duas lentes negras, de Lázaro, com suas fotos alinhavando a narrativa, e as lentes de João Tatu, diretor de fotografia do filme. Fotografias de trabalhadores e trabalhadoras negras na Feira de São Joaquim dispostas na parede a vista das pessoas fotografadas. O registro e a militância junto ao Movimento Negro Unificado na Bahia. Cartões do dia dos namorados com fotografias de pessoas negras. Por 35 minutos nos vemos diante da política e da poética das imagens de Lázaro.
Abdias do Nascimento já dizia do atentado contra a vida do povo negro no Brasil destacando que essa morte está para além da extinção do corpo físico, atravessando também a produção do esquecimento sobre sua história. Assim, se esquecer é também uma forma de morte, lembrar é modo de enfrentar, de tecer levantes e fazer prevalecer a vida.
É na memória que se gesta o tempo, e no tempo que se gesta a memória.
um dia passado-presente
Uma carta para Michele
Oi, Michele (de Michele Mesma), até pensei em fazer dessa carta um áudio, de modo que eu pudesse te entregar palavras ditas, como as que você nos entrega em seu filme, mas por ora essas palavras seguirão por escrito.
Primeiro, quero dizer que fiquei muito tocada pelo seu filme, pensando nesse processo de sair da terra em que se nasce. Eu me vejo muito em sua narrativa. Também me mudei, por motivos semelhantes, relacionados ao acesso ao ensino. Acho que também estou mais distante da Alessandra, filha caçula do Seu Goiás e Dona Jaina, lá do setor Bem Bom, neta da dona Macila e da Dona Martinha, costureira.
Vejo muita coragem no seu filme. Desde as imagens, até a narração que você assume de modo tão determinado e se entregando ao risco de talvez amarrar demais uma história que envolve muitas pessoas e perspectivas, como a de nossas famílias e amigos próximos. Mas você diz de um modo genuíno, vai contando poeticamente e com uma firmeza bonita em cada palavra. E nos entregando junto cada paisagem, textura e cheiro emaranhado em sua memória.
Relacionando sua história a um tempo de tantos ataques à Educação, ameaças que rondam a ideia de uma formação pública, gratuita e diversa. Seu relato se torna ainda mais latente, diz da potência de transformações que o acesso ao ensino pode significar. Como você mesmo disse, seu percurso e encontro consigo mesma se dá em entrelaçamento com a possibilidade de acesso a formação. Eu penso ainda na força e emergência dessas histórias no tempo de agora, e em como foi importante para mim te ouvir.
Tem algo que surpreende também nesse processo, talvez eu não tenha chegado nessa inteireza que você carrega sobre ser de si mesma. Sobre fazer de si mesma território. Em algum momento, me sinto num entre, sempre um pouco estrangeira em cada lugar que estou. E isso assusta. Já estou na segunda cidade, também por motivos semelhantes aos da primeira partida. O que me lembra aquela música “Quem sai da terra natal, em outro canto não para; só deixo meu Cariri, no último pau de arara”. Ainda não sei precisar direito as sensações sobre isso, mas gosto de como você vê esse estar no mundo ter borrado a fronteira do que seria seu lugar.
Em meio às emoções que sua história me provocou, lembrei do filme A vida sobre a terra do Abderrahmane Sissako (1997). Bem no começo da obra há a leitura de uma carta que o personagem Dramane, que é da Mauritânia, mas vive em diáspora na França, escreve para o pai. O texto traz trechos de Diário de um retorno ao país natal de Aimé Césaire, me recordei especialmente do trecho que o Dramane, interpretado pelo diretor, questiona o pai “o que aprendi longe de você, vale mais a pena do que o que esqueci de nós? ”.
Não tenho resposta para essa questão, e gosto que a pergunta me ronde, deixo ela ficar perto sem buscar muitas certezas. E também tenho pensado sobre sua afirmativa de que carrega contigo todo o seu mundo.
Nunca sei ao certo como terminar cartas, mas por hora, quero mesmo é agradecer a partilha e a coragem, fazendo votos para que essa carta lhe encontre bem e com saúde.
Abraços.