– por Maria bogado –
É sim verdade (2018), dirigido por onze mulheres em situação de encarceramento junto ao Complexo Prisional de Feira de Santana, apresenta o cinema como ferramenta de construção de uma coletividade tão afetuosa quanto tensa. Apesar do espaço cinza e dos uniformes, sobressai o rosto, a voz e dicção própria de cada uma das participantes da experiência: Bianca Silva de Santana, Cosmira dos Santos de Almeida, Daiane de Oliveira Dias, Eriane Barbosa, Jéssica Silva dos Santos, Lucinete Gonçalves Rodrigues, Lucy Landgrat, Marlete Santos Peixoto, Natália da Costa Brandão Santos, Roziléia de M. Araújo e Taís Fortunato dos Santos. O filme é fruto das oficinas de gênero, raça, sexualidade e audiovisual do projeto “Direitos sexuais de mulheres negras lésbicas em situação de encarceramento”, vinculado à UFRB. Mais do que pela possível identificação entre mulheres submetidas a uma mesma condição social, a dramaturgia se faz no embate permanente, ressaltando a força criadora do choque entre as diferenças.
É sim de verdade se inicia com as mulheres reunidas em torno de papéis e canetas nos quais escrevem um roteiro. O dissenso não tarda a aparecer. Uma delas afirma que no filme “tem que mostrar a vida real, a vida da cadeia como ela é”. Logo em seguida, outra sugere uma cena em que a amiga seria hostil com Gugu, uma das figuras com a pele mais escura e de performatividade mais socialmente lida enquanto masculina. A amiga reage, dizendo que não agiria dessa forma com Gugu na “vida real”, por não ser preconceituosa. A propositora sustenta seu intento, afirma que “a cena de preconceito” não pode ficar de fora do roteiro. Seria por fidelidade à vida real ou por fidelidade aos clichês que buscam representar as minorias sempre pela chave do estigma e do sofrimento? Como veremos, a riqueza do filme se situa justo na capacidade de se sustentar na linha tênue entre esses dois pólos.
Além da feitura do roteiro, vemos a organização do espaço e as negociações dos modos de encenar. Um lençol pode tapar uma parede, servir de divisória do espaço, cobrir corpos que fazem amor. Uma fala deve ser dada diante ou atrás das grades. Não há nenhuma escolha ingênua, tampouco pacífica. Mesmo as supostas falhas técnicas não são meros erros, mas incorporam a cumplicidade na aprendizagem compartilhada do manejo dos equipamentos de captação de imagem e som. Uma cena é interrompida para que uma amiga ajude a outra a manusear o gravador: a ficção se complementa com a exposição da parceria intrínseca à sua feitura. A opção por legendar o filme, para compensar a inaudibilidade de certas falas, sustenta a aposta na força do registro com toda a sua abertura ao erro. A todo o momento, o roteiro e a decupagem são dissolvidos pelos impulsos dos corpos que se exaltam, que se movem pelo calor dos choque e desfazem toda a organização prévia do espaço, do texto e dos gestos da atuação. Poética involuntária. Mais do que qualquer acordo prévio, são esses desenquadramentos, ruídos e esbarrões que formam a marca do coletivo.
Em dado momento, uma delas afirma que “não existe liberdade na cadeia”. Se as potências da ficção as levam a imaginar uma libertação, nada mais justo do que encenar, então, uma saída. No final da narrativa, todas celebram a despedida de Daiane, que voltará para a casa. No entanto, uma delas alerta: “juízo para não passar no Fantástico de novo”. Elas conhecem bem a cena de espetacularização do sofrimento ligada ao sistema prisional. Uma delas acha que Daiane não está suficientemente adequada ao clichê e pergunta: “Cadê o choro, Daiane?”. Daiane refaz a cena com um choro explicitamente forçado, o que em vez de conferir o esperado tom dramático, cria um distanciamento que tende ao deboche. Mais do que inventarem formas distintas dos estereótipos, elas conseguem os acionar de forma crítica, subvertê-los.1 O espectador que pretende ver o objeto pré-concebido — como na cena do Fantástico — é pego de surpresa vendo um sujeito que joga ativamente com suas expectativas. O olhar é devolvido. É verdade, sim. Verdade fílmica. Mais do que isso, verdade do cinema enquanto potência política de elaboração e transformação do real. Quem espera uma simplória “cena do preconceito” vai levar rasteira. Se na “vida real” elas não saem da cadeia, sem dúvidas alcançam alguma liberdade ao driblar os enquadramentos prévios que definem o imaginário desse espaço.
1Esse argumento é inspirado na comunicação “Revendo a história da cultura de massa no Brasil: teoria e contestação do estereótipo do negro”, na qual a pesquisadora Liv Sovik discute a construção dos estereótipos, de seus espectadores e as formas críticas de contestá-los. Disponível no canal do youtube da TV UFRB: https://www.youtube.com/watch?v=e5Yb3DU8Hag&ab_channel=TVUFRB .
**Na análise do longa-metragem Mães de Dereck desdobraremos o problema de como o cinema pode interferir na construção e apresentação de um grupo, verificando formas muito distintas nos modos de fazer e organizar as imagens e sons. No texto “Verdade do ícone ou da experiência?” seguiremos essa conversa.