• Feito Leite Derramado Sobre a Pedra: o cinema de Jia Zhangke

Feito Leite Derramado Sobre a Pedra: o cinema de Jia Zhangke

Por Isaac Pipano

Conheça o mundo sem jamais deixar Pequim
slogan do parque temático do filme O Mundo (2004)

Há uma China que nos chega por toda parte. Nas chamadas dos jornais das oito, nas notícias dos periódicos diários, pelos documentários da Discovery, através do número de registro impresso nos eletrônicos que invadem as galerias dos shoppings, camelôs e o Mercado Livre. Em larga medida, podemos aproximar os filmes de Jia Zhangke muito mais a essa China do que a certa tradição cinematográfica chinesa que durante décadas dominou os cinemas ocidentais. Não no que concerne à forma ou ao modo como o país está sendo colocado em jogo pelos arranjos financeiros ou pela linguagem, mas sobretudo por estarem frequentemente ligados à ordem dos acontecimentos, como cronicidade, fundidos na vida cotidiana. Reveladores de uma face renunciada pelo tradicional cinema chinês, os filmes de Jia Zhangke contêm o país como lugar de produção desprendido de certos moldes de gêneros e convenções estilísticas e temáticas filiadas às concepções dinásticas. Se a tradição está presente, é no modo como se dá no choque com a intensa modernização, no seio de um país onde as consequências da negociação entre a progressiva ocidentalização dos costumes e a parasitagem do capital estrangeiro vem gerando um estado de coisas de constante variação: lugar de passagem dos corpos, dos tempos e dos espaços.

Tempos e espaços em tensão e a imagem como aquilo que possibilita o encontro de subjetividades, poderes, visibilidades, forças, afetos. Imagens que convocam a urgência de um olhar em contato com um mundo premente, nas contingências do real, que não pede licença para dar passagem. Assim, o cinema de Jia Zhangke está efetivamente desconectado de certa capacidade de presenciar a experiência como objeto dado, passível, abrindo lacunas para que o próprio real entre em disputa no interior de regimes de representação, como um gesto de criação. “Se todo pensamento emite um lance de dados”, antes de se deter em um ponto último que o sagre, como escreveu o poeta Mallarmé[1], toda imagem do real inventa um mundo ao se territorializar em uma representação. Na esteira de um pensamento contemporâneo, motivado pela prerrogativa do documentário que jamais se reduz a uma representação ou asserção, no sentido de deter ou explicitar certo conhecimento sobre o mundo, situamos as imagens documentais ou ficcionais de Jia Zhangke como o nome de uma liberdade.

Os filmes, de uma maneira geral, nos permitem a formulação de questões comuns partilhadas pelas narrativas por uma espécie de emparelhamento. Dito de outro modo, parece que a obra de Jia permanece em um estágio de continuidade, onde os problemas são sucessivamente desdobrados e as imagens acumuladas. Há, notavelmente, diferenças inerentes ao modo como cada narrativa acontece. Diferenças que se expressam na plasticidade da imagem, nas texturas, nos volumes, nas durações, nas composições, nos personagens, nos espaços e nos tempos. Por outro lado, as imagens possuem um senso inequívoco de prolongamento, como se os filmes pudessem ser vistos por um olhar complementar, nos permitindo agrupá-los através das questões evocadas em suas próprias histórias, com seus personagens singulares. A despeito das especificidades, tentamos pensar os filmes a partir dessa comunhão, respeitando e tornando claras as possíveis particularidades, evidente, ao mesmo tempo tentando preservar aquilo que os fazem partilhar certos mundos.

Mundos tomados por um capitalismo em estado laboratorial, hiper selvagem, que engendra outras formas de experiência e impregna-se na imagem. Jia Zhangke não pretende entendê-lo e diagnosticá-lo. Há uma inquietação sobre o modo como essas forças e poderes vêm transmutando as paisagens, as formas de trabalho, a memória coletiva, sim. Não por acaso, os sujeitos possuem uma situação de privilégio em suas imagens. Por outro lado, os filmes se alojam nesse lugar onde o capitalismo já atravessou as camadas epidérmicas da sociedade, implicando a vida em suas mínimas atividades. Eles não produzem rupturas com o processo e a comunidade, apenas. Estão totalmente tomados, no cerne do acontecimento. Aqui, outra vez, parece ser esse lugar onde está a potência das imagens, na tensão entre a mise-en-scène da vida vivida e a da vida filmada, reforçando como o cinema de Jia Zhangke realiza sua “dança em torno do concreto”, citando o filósofo Vilém Flusser. Dança que envolve o concreto e se faz com ele.

À suntuosidade do projeto arquitetônico da barragem de Três Gargantas (Dong, 2006) contrapõe-se a cidade em vias de submergir e, mais do que isso, seus habitantes que, diante do desaparecimento da própria morada, são obrigados a inventar formas outras de vida. A fábrica demolida (24 City, 2008), para além do desmonte material de uma força de produção inadequada ao novo mercado financeiro, apresenta a um só tempo um senso de coletividade e uma solidão irremediável. A coexistência de diversas atividades de trabalho (Inútil, 2007) – o operário, a artista e o artesão – unem pontas de experiências impossíveis e as faz dialogar, atenta a como os sujeitos dão conta da vida e ensejam modos de afetividade frente ao embrutecimento do mundo. As mudanças abruptas da cidade (Memórias de Xangai, 2010) e seus arranha-céus e o lugar das memórias entre o passado inacessível e o presente que se esguia. Nesses filmes de Jia Zhangke, percebemos a cronicidade de uma escritura praticada com o real e seus escapes, fragmentos e lacunas: a plasticidade, a precariedade, a brutalidade, a materialidade, a historicidade e a inventividade do real. Não há um projeto utópico de emancipação. É na própria aridez do mundo que se constituem os momentos de reunião, liberdade e resistência.

Uma tradição milenar em deformação com a velocidade de um capitalismo conexionista, dinâmico; a rigidez da matéria que se esfacela com a força da água; a austeridade da História, seus marcos, guerras, independências, revoluções, conflitos, diante da fugacidade mundana. A pedra e o leite. A dureza, a aridez, o rigor; a leveza, a fluidez, o vapor.  O leite. A pedra. “O E não é um nem o outro, é sempre entre os dois, é a fronteira, sempre há uma fronteira, uma linha de fuga, ou de fluxo, mas que não se vê, porque ela é o menos perceptível. E no entanto é sobre essa linha de fuga que as coisas se passam, os devires se fazem, as revoluções se esboçam”[2]. Elementos heterogêneos que uma vez tocados não se misturam, embora reajam à presença mútua forjando formas únicas de contato. Elementos heterogêneos que pouco nos interessam separados. Muito nos convidam na relação. A pedra sujeita à erosão; o leite exposto à volatilização. Formas do real.

Imagens do real.

Hoje, parece cada vez mais possível conhecer o mundo sem deixar Pequim.

  

China, capital do século XXI: entre a lembrança e o esquecimento

 

“Pronto, é aqui”, diz o exótico piloto da moto que leva Han Sanming à rua onde vivia em Fengjie. O homem analisa a paisagem à sua volta com o semblante desorientado. “Aqui?”, pergunta hesitante diante da convicção do motorista. “Vê ali? Aquela grama na água? É tudo o que resta da sua rua”, aponta o piloto com seu estranho topete loiro oxigenado. Han desce da moto e observa a desmesurada represa, ainda buscando compreender. “Mas está debaixo d’água!”, brada aflito, após alguns segundos no mais profundo silêncio. “Toda a antiga Fengjie foi inundada. Você não assistiu às notícias?”, se justifica o motoqueiro. Dezesseis anos se passaram desde que sua ex-mulher partiu da casa onde viviam e levou consigo a filha. Naquela época, a cidade era uma cidade. Com sua rotina de automóveis, motos e bicicletas. Com lojas e comerciantes, festas e mitos populares: com seus dois mil anos de história às margens do Rio Amarelo. A próxima fase na inundação é marcada com tinha vermelha na parede no alto de um edifício: 156,5 metros. Em breve, onde homens aparecem sentados conversando, haverá apenas água. Água e ervas flutuantes: “ali onde ficava minha casa”. A sequência é retirada de Em Busca da Vida (2006), filme realizado simultaneamente às filmagens de Dong, na metade inicial deste documentário localizada em Fengjie. A situação apresenta uma das maiores expressões da obra de Jia Zhangke - a volta ao antigo lar. Going home. Tanto Han, quanto a personagem vivida por Zhao Tao, musa do diretor, voltam à cidade em busca de algo. Ele procura a antiga família; ela, o marido de quem não recebe notícias há dois anos. A tentativa do regresso se coloca como uma trágica impossibilidade na cidade que se desfez.

Se pudéssemos arriscar (e arriscar, ao menos, nós podemos) um instante na escritura das imagens de Jia Zhangke, investiríamos no modo como elas não costuram as fendas do esquecimento e as lacunas entre vivências e lembranças. Em contraste, elas parecem avançar no sentido de libertá-las, acomodando de modo evasivo as memórias das cidades e dos sujeitos, recuperando-as sempre enquanto criação - retorno na diferença. Tais memórias parecem não visar à recuperação total, à permanência de um mundo que escapa continuamente à imagem e irá sempre escapar. Pois algum mundo se perde, isto é certo - a cidade submergida em Dong e Em Busca da Vida. No entanto, outras forças arrebentam e resistem, como as águas da represa que rebentam e consigo inauguram um novo espaço de sobrevivência. Sem a pretensão de encontrar a origem, o lugar primeiro em um ponto passado exato, fazendo com que todo o presente retroceda e encontre desse modo suas resoluções. Perde-se o acúmulo que leva à reconstrução total, perde-se a solidez da história, perdem-se certos lugares de legitimação. Em troca, mantendo-nos no universo conceitual de Walter Benjamin, escova-se a história a contrapelo, recuperando os passados que se atualizam no presente daqueles que não figuram na História, esta com h maiúsculo. O tempo da fala, dos testemunhos, dos gestos dispersos na cena dos mesmos sujeitos que investem suas potências físicas e afetivas na construção material desse mundo que não se isola da cena, mas a partilha.

"A cidade não se tornou apenas inabitável, ela já não reserva lugar nem para o olhar nem para a memória”[3]. Tentando demarcar um nó entre o espaço e o tempo, a afirmação é precisa. Por outro lado, se a cidade já não reserva lugar para os sujeitos, tampouco para a memória; talvez, e só talvez, o cinema ainda possa nos dar essas experiências. No cinema de Jia Zhangke, precisamente, a memória possui um lugar. Esquivo, certamente, acentrado. São raríssimos os momentos, apenas em Memórias de Xangai (cuja tradução, indubitavelmente controversa, atribui um sentido fixo à memória que a afasta do filme), em que a montagem apela às imagens de arquivo, cometendo um ato explícito e assertivo de se virar ao passado. Até mesmo nesses momentos, contudo, há uma forte impressão de que o passado nunca se dá como recuperação. Passado que só existe se representado, fabulado e, assim, novamente vivido. Agora, outro. Pois a memória nos filmes de Jia nunca está no passado, ela pulsa no presente com energia, com os mesmos olhos arregalados do anjo que assiste à catástrofe que irrompe à sua frente. 

É dessa dimensão “anacrônica” de que fala Beatriz Sarlo “no momento em que a história pensa em construir uma paisagem do passado diferente da que percorre, com espanto, o anjo de Klee, ele está indicando não só que o presente opera sobre a construção do passado, mas que também é seu dever fazê-lo”[4]. O contemporâneo, portanto, não é apenas como o que identifica a obscuridade do presente e, assim, lança-lhe uma luz; é, por outro lado, aquilo que interpola o tempo a ponto de transformá-lo e colocá-lo em relação. “Você se lembra de Fenyang?”, pergunta Jia Zhangke a uma ex-funcionária sobre sua infância no filme 24 City. “Vividamente”, ela responde. A um só tempo, a experiência do passado e a memória do presente estão tensionadas nesta fala. Somente à sombra da luz invisível que emana do escuro do presente, o passado pode reagir às trevas do agora. E a rememoração, sem esta dimensão, transforma a história na própria imagem do vigia que dia e noite caminha pela fábrica “420” prestes a ser demolida totalmente,  assegurando que não violem um túmulo onde corpos já não há – um passado onde não há o que ser lembrado.

"De Norte a Sul, sempre serão encontradas linhas que vão desviar os conjuntos, um E, E, E que marca a cada vez um novo limiar, uma nova direção da linha quebrada, um novo desfilar da fronteira[...] as imagens e os sons", escreve Deleuze. "E os gestos do relojoeiro quando está na linha de montagem e quando está na sua mesa de montagem: uma fronteira imperceptível os separa, que não é nem um nem o outro, mas também que os arrasta um e outro em uma evolução não paralela, fuga ou em um fluxo em que já não se sabe quem corre atrás de quem, nem para qual destino. Toda uma micropolítica das fronteiras contra a macropolítica dos grandes conjuntos"[5]. O filósofo escreve nesse momento sobre Godard, embora pudéssemos, por analogia, ponderar sobre a obra de Jia, uma vez que sua montagem não nos revela uma terceira imagem enquanto ideia finita, fazendo dialogar aquilo que por princípio é mantido apartado. Colocar em oposição, neste caso, significa criar algo de produtivo desta tensão, desde que o resultado não se esgote em si mesmo.  Assim, nos fazem lembrar: a cidade é sempre mais um. Duas. Três. O passado e o presente. O privado e o público. A lembrança e o esquecimento. Escrevê-la é operar a partir de redes que se conectam e se anulam fragilmente, na produção entre as falas, os corpos, os gestos e as imagens. Imagem sobre a imagem, a cidade se dobra em outras representações, revelando sua potência de variação. 

Na cena de abertura de Memórias de Xangai, um imponente leão de bronze é filmado a partir de suas costas. Aos seus olhos, demolições, destroços de construções e tráfego de carros da metrópole, como em outra qualquer, em câmera lenta. A imagem é vigorosa: à sombra de tudo o que é mais imutável, a cidade se inscreve nos seus vestígios e fluxos, no que se esquiva à tomada, no que se deixa flagrar e, no mesmo instante, desparece por entre a fileira de automóveis. Da memória da cidade, talvez, conservem-se as estátuas de bronze. Ao cinema de Jia Zhangke, no entanto, interessa mesmo aquilo que escapa aos olhos e esvai. Lembranças esquecidas. Como no poema de T.S. Eliot: “o que poderia ter sido e o que foi convergem para um só fim, que é sempre presente. Ecoam passos na memória ao longo das galerias que não percorremos em direção à porta que jamais abrimos”.

 

Os rasgos e o tecido: montagem e política

As imagens nos filmes de Jia Zhangke poderiam restituir aos sujeitos o direito às cidades que lhes são tomadas pelos poderes que transforma brutalmente a paisagem topográfica e sensível, erigindo e devastando lugares, varrendo histórias e memórias? As imagens podem alterar minimamente o ser sensível que está ligado às condições de tais sujeitos? Pois, se por um lado o cinema pode desejar o mundo que quiser; por outro, ele precisa instituir conexões com mundos que não domina. A China não dominada, tomada e retroalimentada pelo capitalismo, de onde deriva também o cinema e suas condições materiais e imateriais. Como operar uma crítica no interior desse paradoxo? Pergunta difícil de ser deduzida, tampouco em uma só resposta. Arrisquemos, então, por algumas vias.

 O documentário não opera interrompendo o fluxo, sua velocidade é infinita e anacrônica. (...) por que fazer documentário? Certamente não há uma resposta única, mas se o documentário insiste, urgentemente, é porque o real está sendo inventado, com imaginação e ficção, porque podemos muito mais do que existe, porque certas palavras ainda circulam sem fazer diferença no mundo, porque os recortes do que é visível e do que é dizível dependem da nossa força de imaginação e de invenção do real. Porque diante da dor do outro não há retake[6].

“Porque diante da dor do outro não há retake”. A frase é precisa. Se o documentário insiste, urgentemente, é porque há o outro a ser inventado. E a nossa existência passa igual ou desigualmente por tal relação de alteridade. Passa pela dor do outro. Porque ainda perpetuam-se os espaços de opressão, violência, cinismo. E também a ternura, o prazer, a delicadeza. O que nos faz lembrar o cineasta Pedro Costa, quando diz que a vida completa e difícil das pessoas ou a violência de acontecimentos históricos e sociais nãosão o que lhe dá vontade de fazer um filme. “É sempre qualquer coisa que está do lado dessas pessoas difíceis e complicadas e que, ao mesmo tempo, também nos pode dar notícias sobre nós. Percebemos como andamos perdidos”. De algum modo, se o documentário insiste, urgentemente, é porque continuamos perdidos. Não que seja sua vocação mais messiânica predizer o caminho de um mundo mais seguro, justo, honesto. Mas porque ele pode, de algum modo, inventar os lugares para que certos discursos se reinscrevam, cidades se reconstruam, memórias sejam resgatadas, sujeitos se reinventem.

Por muitas vezes os filmes de Jia Zhangke poderiam ser observados sob as categorias da figura estandardizada de uma arte crítica estabelecida em nossas expressões contemporâneas, por tratarem de mundos, no limite, opostos: “a do encontro de elementos heterogêneos, incompatíveis, que instaura o conflito entre dois regimes sensíveis”[7].Contudo, esta é uma forma de tensão que se revela não produtiva, que tende a dar conta do evento impossibilitando qualquer outro dizer ao seu respeito, traçando formas de ação política exauridas em certa função social. É fácil perceber como a compreensão pode nos induzir a uma visão redutora das imagens nos filmes do cineasta: a industrialização e o mundo do consumo frente às formas orgânicas da natureza e o labor artesanal (Inútil e Xiao Wu - Pickpocket); a precarização do trabalho e da vida diante da ostentação dos projetos urbanísticos (24 City e O Mundo); a preservação de espaços cada vez menos habitáveis em contraste com a ocupação humana massiva e desordenada nas cidades (Memórias de Xangai); a pungente ocidentalização e o sufocamento da antiga tradição onde se sedimenta toda a milenar sociedade chinesa (Prazeres Desconhecidos, Plataforma). 

Neste sentido, a montagem adquire força, religando pontas de experiências a priori impossíveis, através de operações de conexão e disjunção e, sobretudo, por em relação – sujeitos, afetos, visibilidades, palavras – abrindo passagens para os devires. Devir-imagem, devir-cidade, devir-memória. A afirmação poderia nos colocar em uma posição de conflito, afinal, o cinema mais dialético parte justamente do encontro de forças dissonantes pela montagem, encontrando em seu intervalo a produção da síntese. Estar em devir, por outro lado, pensa o acontecimento, como propõe Didi-Huberman, como construção; e o dado, como um possível. O que permite que se coloquem em rede tantas imagens, na aparência, contraditórias: fábricas, vilas, paisagens, bairros, espetáculos, tecelagens, rios, escombros, embarcações. Poderíamos produzir uma lista de imagens ininterrupta. Porém, não se trata disso. De um acúmulo de imagens à exaustação, mas à força daquilo que as tece, da escritura que as faz partilhar certos mundos. Não se trata também de uma visão totalizante – da condição humana, do mundo, da China - justamente por invalidarem essa conformação por um corte “dialetizante”: pensar a tese com a antítese[8]. Aproximação e afastamento. Desejo com reserva. Dobras e estrias da imagem. Se, para conhecer, é preciso tomar posição, a ação de Jia Zhangke enquanto operador de imagens é precisamente fazê-las passar de um estágio a outro e, sobretudo, comunicar-se. A diferença entre as duas ações é evidente: num campo dialético, pautado por princípios de causalidade, os efeitos produzidos apontam ao próprio centro – à obra, ao problema social, ao discurso apologético -, onde o embate entre os heterogêneos dá a ver sempre uma unidade. No sentido oposto, os filmes de Jia passam de blocos de imagens a outros sutilmente, colocando-os em relações tangenciais, fazendo do evento uma construção, mudando de lugar para que seja possível ver, sem configurar uma unidade como o discurso monolítico da verdade.

“Uma arte crítica deve ser, à sua maneira, uma arte da indiferença, uma arte que construa o ponto de equivalência de um saber e de uma ignorância, de uma atividade e de uma passividade[9]”, escreve Jacques Rancière. Nesta medida do sem medida, como o filósofo francês chama a montagem, Jia encontra em uma mina de carvão trabalhadores que retiram fuligem de si após o expediente. Dos corpos nus escorre a água do trabalho, imunda, que se mistura à imundície do sanitário. Não se trata de interrogar o mundo e submetê-lo às possíveis relações de causa e efeito, “como se a tentativa para ultrapassar a tensão inerente à política da arte conduzisse ao seu contrário, isto é, à redução da política ao serviço social e à indistinção ética[10]”. A reificação do homem, a artificialidade da vida, como uma arte de denúncia que se desimplica, como estivesse fora, a observar o mundo que racha. Estamos todos no mesmo mundo sentindo os tremores e abalos sob nossos pés, assistindo as fendas abrirem aos nossos olhos. Não convém conduzir a política da arte a formas consensuais, visando excluir aquilo que é a própria disputa política – o dissenso. Dissenso que não é o conflito de interesses e valores da comunidade, mas “a possibilidade de opor um mundo a outro”.

O cinema não encontra abrigo aos moradores de uma cidade demolida. Não cura traumas do passado. Não oferece repouso, conforto, não abranda as desigualdades. Parte da sua força pode estar nessas próprias rachaduras do real, por dentro, entre a precariedade da vida e suas possibilidades estéticas. Tensão que habita os corpos, os tempos e os espaços. Os mineradores de Fenyang e as modelos de Paris; os trabalhadores da “420” e as antigas testemunhas de Xangai; as costureiras na tecelagem de Cantão e o pintor impressionista; a estilista idealista e a solitária atriz-personagem inventada. Acima de tudo, corpos, indistintos, e o cinema como operador das tarefas de sujar, lavar, religar, confrontar, justapor, dissipar e montar. Por isso, há no cinema de Jia Zhangke certa recusa a esclarecimentos quanto às forças objetivas que movem tais formas de vida ou que levam à sua supressão. São essas ausências de explicações razoáveis, de investimentos morais, de vocações conciliadoras, que também nos colocam no cerne do que há de ser plenamente político, de uma política propriamente da arte: a tensão entre uma vida e suas potências, entre o que ela é e o que ela pode. O dissenso agindo na divisão sensível entre mundos comuns.

A cena que parece estar forjada nos filmes de Jia Zhangke é aquela cuja linha que separa o dentro e o fora desapareceu, ou foi cortada pelas formas de estar dos sujeitos, que fazem da cidade suas potências de apropriação da vida e do comum, na tensão entre a vida vivida e a vida filmada. No último plano de Inútil, um senhor pedala repetidamente uma máquina de costura manual, com a qual realiza um conserto. Onde poderia haver uma metáfora, talvez exista a noção que o cinema de Jia Zhangke compartilha sobre as imagens, o mundo e os homens: como a própria ocupação do alfaiate que pensa, continuamente, os rasgos com o tecido.

 


[1] MALLARMÉ, Stéphane. “Um lance de dados jamais abolirá o acaso”. Trad. de Haroldo de Campos. In: CAMPOS, A.; PIGNATARI, D.; CAMPOS, H. Mallarmé. São Paulo: Perspectiva, 2006, p. 153-173.

 

[2] DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Editora 34, 1992 (p. 60-61).

 

[3] HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000 (p. 22).

[4] SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Trad. Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2007 (p. 49).

 

[5] DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Editora 34, 1992 (p. 61).

 

[6] MIGLIORIN, Cezar. “Documentário recente brasileiro e a política das imagens”. In: MIGLIORIN, C. (org.) Ensaios no real: o documentário brasileiro hoje. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2010 (p. 20).

 

[7] RANCIÈRE, Jacques. Política da arte. Trad. Mônica Costa Netto. Transcrição da apresentação de Jacques Rancière no seminário “São Paulo S.A: práticas estéticas, sociais e políticas em debate” (São Paulo, SESC Belenzinho, 17 a 19 de abril de 2005).

[8] DIDI-HUBERMAN, Georges. Cuando las imágenes toman posición: el ojo de la historia, I. Madrid: Antonio Machado Libros, 2008.

 

[9]RANCIÈRE, Jacques. Política da arte. Trad. Mônica Costa Netto. Transcrição da apresentação de Jacques Rancière no seminário “São Paulo S.A: práticas estéticas, sociais e políticas em debate” (São Paulo, SESC Belenzinho, 17 a 19 de abril de 2005).

[10] Ibidem.