Mostra Competitiva
Por que navegar?
texto de Ana Rosa Marques
A proposta da Mostra Competitiva reflete-se nas águas do Paraguaçu, rio que banha a cidade de Cachoeira. De margens férteis e curso navegável, era por aí que no passado o Recôncavo transportava suas riquezas e se comunicava com outros lugares. Hoje, a região tem mais caminhos para se conectar ao mundo. E eles atravessam também a tela do cinema. Uma tela que no Cachoeiradoc será abundante de ideias, afetos, reflexões e encontros como a vida que emerge do Paraguaçu.
A linha curatorial da mostra, em todas as edições do festival, se baseia numa concepção de cinema que se arrisque em testar novas formas de interagir e falar sobre a realidade, livre de fórmulas, práticas e ideias prontas sobre o próprio o cinema e o mundo. Um olhar para vida que seja inventivo, mas ao mesmo tempo preocupado e engajado com o que acontece nela. Esse princípio norteador foi desenvolvido e é constantemente aprofundado no Grupo de Pesquisas e Práticas do Documentário da UFRB. Grupo que a cada ano conta com novos tripulantes, com diversas e instigantes perspectivas e questões, o que transforma a árdua tarefa de selecionar as centenas de obras que chegam até nós numa tarefa muito prazerosa e estimulante.
Aqui reunimos seis longas-metragens e 13 curtas de várias partes do país. São obras de diferentes estéticas, pontos de vista e temáticas que representam a multiplicidade e a renovação que atualmente se vê no documentário. Seus realizadores são corajosos marinheiros que trilham caminhos alternativos no campo documental, enfrentando os riscos inerentes à aventura de se explorar os mistérios e a imprevisibilidade do real.
Em “Branco sai, preto fica”, “O ponto cego” e “A gente”, há uma interessante revelação das diversas práticas de vigiar e punir empreendidas pela sociedade e pelo Estado. Esse conjunto de obras diverge do mero denuncismo encontrado em outras formas da não ficção ao não oferecer um discurso com respostas fechadas e fáceis. Além disso, são mais ousados esteticamente. O primeiro e o segundo se apropriam de estratégias narrativas típicas da ficção. O terceiro observa um personagem pouco visto e ouvido em questões já tão debatidas.
Se o documentário estimula nosso desejo de saber e conhecer e pode nos dizer algo sobre a complexa experiência de viver em sociedade, que aprendamos a ser provocativos como os diretores de “O arquipélago”, “O porto” e “E”. Mas sin perder la ternura e o entusiasmo com as descobertas e vivências observadas em “Perto da minha casa” e “Karioka”. Com um olhar cético ou curioso, esses filmes abordam a vida nos grandes agrupamentos urbanos, uma questão mais que urgente na contemporaneidade, e posicionam-se diante de como a gestão da cidade interfere na existência das pessoas, em suas relações e subjetividades.
Uma interferência na administração da vida que muitas vezes pode atravessar o tempo e forjar a História, como podemos ver na constituição e organização de um bairro marcado pela escravidão em “Caixa-d’água: Qui-lombo é esse?” e na dominação política de um Estado por uma única família, como observamos em “Luíses - Solrealismo maranhense”. Contra as injustiças, o documentário reage com a releitura e reescritura da História, afirmando ou revelando outros protagonistas e vozes discursivas, seja o povo negro que cultiva suas tradições e valores, sejam os jovens cineastas nordestinos que, diante da falta de incentivo à cultura na região, reúnem-se e buscam de maneira urgente, desesperada e quase utópica viabilizar um cinema independente, crítico e criativo. Resistência a toda forma de opressão na política e na arte.
Resistir ao que é imposto e arriscar para ser livre. É especialmente no sentido da experimentação que o curta-metragem mostra-se como um formato propenso à pesquisa de linguagem. Reunidos num programa bastante diversificado tematicamente, os curtas “Contos da maré”, “Notícias da rainha”, “A que deve a honra da ilustre visita este simples marquês?”, “As águas”, “Malha” e “O canto da lona” buscam se fertilizar com ingredientes vindos do teatro, do cinema de ficção e do cinema experimental. Desta maneira, através das sensações e da imaginação, esses filmes propõem formas diferentes de fruição, que desafiam uma lógica assertiva e racional tão característica da tradição documental. Questionar, provocar nossas firmes convicções, nossas arraigadas relações não apenas com o mundo, mas também com o cinema. Não seria também essa a razão de ser do documentário? Não seria essa a fonte de tanto prazer e curiosidade que vem conquistando mais e mais admiradores do gênero?
No elogio ao imprevisível, ao indeterminado, o documentário tem encontrado e valorizado as experiências que possibilitam o encontro com o mundo e com o outro. Já não se trata mais de falar sobre o outro, mas criar, experimentar e expressar de maneira compartilhada. Propor e dividir uma experiência: é isso o que vemos em “Homem comum”, “A vizinhança do tigre”, “La llamada” e “Aprender a ler pra ensinar meus camaradas”. Filmes que demonstram que o papel do documentarista não é “dar” a voz ao outro, como um ato benevolente de escuta, mas filmar o corpo e o pensamento do outro como um gesto de transformação de si, do outro e do espectador.
Ao singrar esse conjunto de filmes, compreendemos porque precisamos navegar, não porque pretendemos chegar a um porto seguro, mas porque é necessário se aventurar para descobrir novos mundos.
LONGAS-METRAGEM
A gente (Paraná, 2013, 89 min)
De Aly Muritiba
A Vizinhança do Tigre (Minas Gerais, 2014, 95 min)
De Affonso Uchoa
Aprender a ler pra ensinar meus camaradas (Bahia, 2013, 84min)
De João Guerra
Branco sai, Preto fica (Distrito Federal, 2014, 93min)
De Adirley Queirós
Homem Comum (São Paulo, 2014, 103 min)
De Carlos Nader
Luíses - Solrealismo Maranhense (Maranhão, 2013, 74min)
De Lucian Rosa
CURTAS-METRAGEM
A que deve a honra da ilustre visita este simples marquês? (Paraná, 2013, 25min)
De Rafael Urban e Terence Keller
As águas (Paraná, 2014, 10min)
De Larissa Figueiredo
Caixa d’água: qui-lombo é esse? (Sergipe, 2013, 15min)
De Everlane Moraes
Contos da Maré (Rio de Janeiro, 2013, 17 min)
De Douglas Soares
E (São Paulo, 2013, 17min)
De Alexandre Wahrhaftig, Helena Ungaretti e Miguel Antunes Ramos
Karioka (Mato Grosso, 2014, 20min)
De Takumã KuiKuro
La Llamada (São Paulo, 2014, 19min)
De Gustavo Vinagre
Malha (Paraiba, 2013, 14min)
De Paulo Roberto
Notícias da Rainha (Paraná, 2013, 19min)
De Ana Johann
O Arquipelágo (Rio de Janeiro, 2014, 28min)
De Gustavo Beck
O canto da lona (São Paulo, 2013, 25min)
De Thiago Mendonça
O porto (Minas Gerais, 2013, 20min)
De Clarissa Campolina, Julia De Simone, Luiz Pretti e Ricardo Pretti
Perto da minha casa (Espírito Santo, 2013, 16min)
De Carolini Covre e Diego Locatelli
Ponto Cego (São Paulo, 2014, 10min)
De Chico Bahia