por Fabio Rodrigues, Patrícia Mourão e Rayanne Layssa,
“Para fazer um novo mundo, você começa com um antigo, certamente. Para achar um mundo, talvez você precise ter perdido um. Talvez você precise estar perdida. A dança da renovação, a dança que criou o mundo, sempre foi dançada nas bordas das coisas, no limite, na costa enevoada”
(Ursula Le Guin, em World making)
Compõem esse programa filmes que habitam e semeiam espaços intersticiais, com cenas de encontros emancipatórios e que se mobilizam com movimentos de luta. São filmes que, à sua maneira, constroem relações e intervenções no presente, ora caminhando nas esquinas do mundo, “dançando nas bordas das coisas”, ora engajando-se frontalmente na “refundação do possível”, como diz Jota Mombaça (2018)*. Atentando-se aos múltiplos trajetos da luta e das existências, tomamos emprestada um trecho da canção “Cobra Rasteira”, de Kiko Dinucci, para nomear esse programa: “Nem todo trajeto é reto, nem o mar é regular….”
Sessão 4 – O negrume da noite reluziu o dia
Inspiradas pela famosa canção do bloco afro Ilê Aiyê, “Negrume da Noite”, iniciamos com a sessão do longa-metragem Negro em Mim (2020), filme múltiplo que reúne um elenco vigoroso de artistas e pensadoras/es negras, construindo nessa confluência de vozes um retrato coletivo de um movimento em curso. Este filme cumpre um papel decisivo em documentar o pensamento, saberes estéticos-corpóreos**, as imagens e vozes de sujeitos negros historicamente invisibilizados. Confrontando a grande narrativa de um país “racialmente democrático”, eles afirmam seus lugares no mundo através da arte; com suas presenças e seus desejos, esboçam outros futuros porvir. Como no paradigmático Abolição (Zózimo Bulbul, 1988), vemos em Negro em Mim um necessário documento da luta, das poéticas e do levante negro no Brasil.
Disponíveis online entre 05 e 11/12 e 19 e 20/12.
Sessão 5 – Inventar a liberdade
Como escreve Judith Butler em referência a Trinh Minh-ha, é possível “enquadrar o enquadramento” ou ainda “enquadrar o enquadrador”. Ambas as expressões parecem justas aos dois filmes desta sessão. Cadê Edson? (2019), ao desviar imagens feitas pela polícia e utilizá-las como contraprova, expõe a mise-en-scène do poder e assume a guerra das imagens como decisiva para a luta do movimento popular por moradia em curso. Como um aliado ativo da luta, este filme constrói uma arquitetura sensível para a militância, tanto quando remonta arquivos ou quando reúne pessoas, provas e histórias dispersadas pela truculência do estado. Em É sim de verdade (2018), mulheres em situação de cárcere inventam coletivamente uma narrativa de amor e liberdade. O filme é resultado de ações do projeto de pesquisa e extensão da UFRB, o Laboratório de Estudos e Pesquisas em Lesbianidade, junto a um grupo de mulheres do Complexo Prisional de Feira de Santana.
Disponíveis online entre 05 e 11/12 e 19 e 20/12.
Sessão 6 – Entre o tempo e nós
Para aqueles para quem parar é um risco, a vida precisa ser correria. “Entre o Tempo e Nós” reúne filmes que se encontram no respirar do descanso, na calmaria de uma criança preta dormindo como em uma das cenas de Entre Nós e o Mundo, ou na tomada de força pela parceria, pelo canto e pelo abraço que fazem a luta seguir. O respirar aparece no encontro para o cultivo do cuidado, como em Minha História é Outra onde duas amigas retocam a cor dos cabelos. Neste curta, celebram-se as existências e histórias plurais. Por fim, em Arco do Tempo, o corpo atravessa o tempo para contrariar um desaparecimento programado. Se no começo do curta um abismo ameaça sugar o sujeito, as conversas íntimas confluem na defesa da liberdade, que se insinua, finalmente, num retrato da família respirando feliz no quintal. “Eu não estou sozinho. Você não está sozinha”
Disponíveis online entre 05 e 11/12 e 19 e 20/12.
Sessão 7 – Danço porque preciso
Esta sessão surge a partir de filmes que dançam com suas imagens, documentando corpos que atualizam a resistência em cada passo, em cada canto. Numa bela coreografia das transformações e sobrevivências, Ainda te amo demais resgata a cena de reggae em Maceió (AL), atentando-se às mudanças no ritmo, às saudades latentes, às dores de um tempo eternizadas em canções e aos reencontros que reativam a força reggaeira. Em Essa Festa é Minha Vida, ao longo de uma madrugada, observamos Piteco arrumar-se para a tão esperada Festa da Nossa Senhora D’Ajuda, em Cachoeira (BA). Piteco, junto às suas amigas, prepara-se para a festa como uma estrela a aguardar o ano inteiro pela sua glória. Aurora nos faz mergulhar no lento movimento das danças da vida de três diferentes mulheres. No palco, no teatro da vida, se separam; no cinema, se reaproximam. Três mulheres, três janelas. No jogo de olhares, no aflorar do tempo, Aurora atualiza e reescreve com os corpos a conhecida frase de Emma Goldman: “Se eu não puder dançar, não é a minha revolução”.
Disponíveis online entre 05 e 11/12 e 19 e 20/12.
* Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=p1krp7_bA20
** GOMES, Nilma Lino. O movimento negro educador: saberes construídos nas lutas por emancipação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.