Sessões especiais em homenagem à Makota Valdina
Agir como água: CachoeiraDoc, o retorno além das margens do Paraguaçu
Por Amaranta Cesar
Tem momentos em que a gente tem de estar na luta como água. A água vai pingando: pin, pin, pin… Ninguém está vendo a água pingando. Daqui a pouco, você vê que está tudo alagado. É assim que a gente vai ter que agir, como Dandalunda, como Oxum, como Aziri, como água1.
A pretexto de nos falar sobre cinema e sua relação com os terreiros, Makota Valdina, professora, militante negra, ambientalista, defensora dos direitos das mulheres e liderança religiosa do Nzo Onimboyá, terreiro de nação angola em Salvador, nos legou essa instrução de sabedoria política, uma lição de vida, numa das sessões do CachoeiraDoc, em sua última realização, datada de setembro de 2017. Era uma edição marcada pelo signo do fogo: chamas atravessavam as peças gráficas do festival, a interpelar os espectadores frente às derrotas políticas que sofríamos naquele momento e que se adensariam na dimensão da barbárie dos dias atuais. O fogo ardia nos cartazes espalhados por Cachoeira e na tela do Cine-Theatro Cachoeirano: mas Makota Valdina oferecia ali um contraponto antecipatório.
De lá para cá, o CachoeiraDoc fez uma pausa forçada por dois anos, e em março de 2019, de modo precoce e inesperado, Makota Valdina nos deixou. E aqui estamos, retomando o festival e oferecendo alimento para sua memória, pingando água na terra fértil que ela foi, que ela é. Homenageá-la é a forma que encontramos de nos juntar ao trabalho de fecundação do presente com a força da ancestralidade para garantia de vida. Como diz Conceição Evaristo, o ancestral coloca o novo no mundo.
Nascida em 1943, no Engenho Velho da Federação, bairro popular de Salvador onde passou toda sua vida, detentora de uma pedagogia única, de uma ciência ainda por existir, Makota Valdina, desde a sua juventude, como professora negra e militante, já dava lições em palavras e gestos que são cada dia mais atuais. Ela construiu, em trânsitos por bibliografias e cenários os mais diversos, uma trajetória de quem nunca se negou a ir com a sua voz e o seu corpo onde estava a luta, pela vida, pela liberdade, pela justiça, contra o racismo, enfrentando quem quer que fosse – e disso se orgulhava. Mas a sua singularidade parece estar em amalgamar esse poder incendiário, que a fez uma guerreira admirável, a uma profunda ancoragem, recolhida na vivência dos fundamentos de uma milenar experiência de saber/poder, para a qual não há dicotomias – entre cultura e natureza; política e espiritualidade; visível e invisível; humanos e não-humanos. E é desse lugar que Makota Valdina oferta inteligência também para o cinema:
Quer fazer filmes? Quer fazer imagens sobre candomblé? A toda hora a gente tem como fazer, porque todas as formas de racismo que a gente sofre atingem o candomblé. Porque a maneira como a sociedade vê as pessoas de candomblé é como a sociedade vê cada descendente de africano que existe na sociedade. (…) É preciso acabar com os exotismos, com as folclorizações, e encarar a diferença: tem uma cultura diferente, que pensa de modo diferente, vê o mundo de maneira diferente, interage com esse mundo de uma forma própria2.
Ao abordar os limites do cinema e do documentário em relação ao sagrado, Makota Valdina traz, para além deles, a complexidade, de natureza ontológica e política, do nosso modo de estar e interagir com o mundo.
Em algum sentido, ainda por se revelar completamente, a profundidade da experiência de mundo que a forjou, bem como os limites que reivindicava e o tipo de engajamento que eles convocam, nos conduzem a um conjunto de interrogações formulado por Denise Ferreira da Silva, se o tomarmos, por um desvio, para pensar também o cinema:
Quantas vezes mais deve o trabalho crítico e criativo recitar os episódios de violência colonial e racial? Quantas vezes se deve exigir o reconhecimento de que ocorreu uma injustiça? De que outra maneira se pode articular um grito por justiça? Quantos corpos mortos teremos que acumular até que haja bastante evidência?3
Ao expor o insuportável acúmulo de evidências e a sua exaustão enquanto estratégia discursiva e imagética num mundo estruturado pela violência racial e colonial, as interrogações de Denise Ferreira da Silva traduzem uma convocação ao cinema documental, gênero que se funda e orbita em torno da produção de evidências do mundo visível e de suas injustiças, para um trabalho de recomposição crítica e poética.
Uma lição da cosmologia bakongo, traduzida e evocada com frequência por Makota Valdina, surge aqui como uma pista para esse trabalho e a exigência da produção de outras imaginações que o acompanha:
A tradição bakongo concebe a Terra, o planeta dos humanos, como um misterioso futu para a vida. Conforme Fu-Kiau, “futu dya nkisi dya kanga kalunga mu diambo dya moyo” – um pacote de essências curativas/remédios, codificado, amarrado, selado pela ação da fonte do completo poder/energia universal, o todo em tudo, com intenção de vida4.
Para se relacionar com o modo de interação com o mundo que é próprio do candomblé, particularmente do candomblé angola do qual Makota Valdina foi grande defensora e pesquisadora, ao cinema demandam-se atitudes que podem orientar novas experiências críticas e criativas: despir-se de pretensões referentes e autorreferentes, liberar-se dos sistemas de juízos e valores das políticas autorais e abrir-se para uma escuta. Nesse momento em que se buscam noções e práticas de cura nos mais diversos campos das artes e saberes, pode-se encontrar na cosmologia bakongo um programa para todo o cinema: entender-se enlaçado à Terra, na intenção de vida, para a vida.