“Toda articulação política é ficção científica”*

por Evelyn Sacramento, Kênia Freitas e Ramayana Lira

A constelação de filmes aqui proposta nos desafia a pensar nos confins das imagens e dos sons e de nós mesmos. Filmes que de maneiras subterrâneas e/ou explosivas vislumbram futuros — e os seus depois e os seus antes (o sempre-já lá). Especulam um Brasil que não existe e, não existindo, permanece e se reinventa. Hiperficcionalizando e abrindo a ideia do documentário como registro do real para também tratar do hiper, do intra e do sub, que atravessam as nossas realidades.    

Sessão 11 –  Vibra o vazio no invisível movimento**

Obatala film (Sebastian Wiedemann) e POPXOP (Natalino Maxakali e Ana Estrela) celebram e se oferecem como narrativas de criação e cura do mundo — com faíscas de luz, escuridão, auroras; cantos-encantadores e percussão. POPXOP acompanha o ritual Maxakali dos espíritos-macacos, pontuado pelo recontar dos mitos. Reafirmando o cinema como espaço para a partilha das experiências dos eventos-encontros, POPXOP permite a imersão no jogo de aparecer/esconder, demandando uma conexão com a imagem que, ao mesmo tempo, materializa e reinventa uma cosmologia. Obatala film, um “filme-oferenda”, também aposta nas estratégias da luminescência e do ritual para criar uma experiência sensorial que se aproxime de uma experiência de conexão espiritual. Os dois filmes nos permitem pensar e sentir a potência da imagem e do som para invocar cosmologias e fazer vibrar o corpo. Ao mesmo tempo, são documentários em que reverberam os limites entre o sagrado e o segredo, o que se dá a possibilidade de imagear (e o que não), criando presenças ativas do invisível. 

Obatala film (Minas Gerais, 2019, 7 min.), de Sebastian Wiedemann

POPXOP (Minas Gerais, 2019, 102 min.), de Natalino Maxakali e Ana Estrela

Disponíveis online entre 12 e 20/12.

Sessão 12 – “As naves pousaram anos atrás”***

A Cristalização de Brasília (Guerreiro do Divino Amor), Reduto (Michel Santos), Invasão Espacial (Thiago Foresti) e VAZÃO (Cecilia Assy e Marcia Rezende) transitam entre a hiperficção, o escrache, o realismo mágico e a experimentação para se interrogarem sobre os encontros impossíveis entre o absurdo e o belo, o geológico e as espaçonaves (que hoje são foguetes, mas já foram caravelas – e ainda desapropriam tudo ao redor). São filmes que confrontam a mentira fundadora colonial do mito Brasil. Em a A Cristalização de Brasília a capital federal é desnudada pelo acúmulo de imagens e narrativas que a cercam: desbravamento bandeirante, centro de poder, promessa do recomeço no vazio, charlatanismo new age. No filme tudo é excesso e, ainda assim, não tão falso quanto o que se considera a versão oficial. Excesso que também transborda em Reduto, que nos situa dentro do pesadelo do agro é pop – “o sul do país na Bahia”. Por meio do estranhamento e recusa da própria narrativa familiar, o documentário busca um reencantamento pelo singelo e pelo possível contra o grotesco. Em Invasão Espacial e VAZÃO o projeto desenvolvimentista industrial e militar atravessa e invade de forma insólita a vida das pessoas, dos rios, dos bichos, da floresta. São filmes que partem da investigação sobre a expropriação e os projetos de poder para abordar as nossas distopias em curso.

A Cristalização de Brasília (Distrito Federal, 2019, 7 min.), de Guerreiro do Divino Amor

Reduto (Bahia, 2020, 13 min.), de Michel Santos

Invasão Espacial (Distrito Federal, 2019, 15 min.), de Thiago Foresti

VAZÃO (Pernambuco, 2019, 9 min.), de Cecilia Assy e Marcia Rezende

Disponíveis online entre 12 e 20/12.

Sessão 13 –  “A fuga só acontece porque é impossível”****

Lembrar daquilo que esqueci (Castiel Vitorino Brasileiro), Rua Augusta, 1029 (Mirrah Iañez), Relatos Tecnopobres (João Batista Gabriel Carvalho Silva) e Veias de Fogo (Coletivo – Carnaval no Inferno) costuram rotas de fuga: na cura, na ação política e na alegria. Uma promessa feita ao avô guia os percursos de cura em Lembrar daquilo que esqueci. Uma cura processo e ritual, coletiva e individual, de um trauma brasileiro que nos funda. Cura que se articula na luta em Rua Augusta, 1029 e em Relatos Tecnopobres. O primeiro, um filme imersão que se implica estética e politicamente no processo de resistência e criação de mundo das ocupações urbanas. E o segundo, uma carta do futuro das lutas subterrâneas já em curso no agora mesmo. Cura e luta encontram-se na festa em Veias de Fogo. Se a guerra está declarada e o apocalipse se aproxima, as demônyas estão montadas e preparadas. Como na fuga musical, há um tema repetido nos filmes que se espraia pelas obras: o corpo. Os corpos são colocados no centro das dúvidas, ambiguidades, promessas e travessias que os filmes figuram. Vulneráveis e resistentes em Rua Augusta e Relatos Tecnopobres, ponto de conexão com a ancestralidade em Lembrar daquilo que esqueci e em furiosa vibração de afirmação da vida em Veias de Fogo 

Lembrar daquilo que esqueci (Espírito Santo, 2020, 20 min.), de Castiel Vitorino Brasileiro

Rua Augusta, 1029 (São Paulo, 2019, 11 min.), de Mirrah Iañez

Relatos Tecnopobres (Goiás, 2019, 13 min.), de João Batista Gabriel Carvalho Silva

Veias de Fogo (Ceará, 2020, 18 min.), de coletivo Carnaval no Inferno

Disponíveis online entre 12 e 20/12.

* “Reescrevendo o futuro: usando ficção científica para rever a justiça”, de Walidah Imarisha, 2020 (2015)

 ** Tradução livre de  “La indetenible quietud”, de Clara Janés, 2008

*** Tradução livre do título do texto de Mark Bould, 2007

**** Referência à obra “Sem título (a fuga só acontece porque é impossível)” de Jota Mombaça. Intervenção na parede, «Arte Democracia Utopia», Museu de Arte do Rio, 2018.