por Evelyn Sacramento, Kênia Freitas e Ramayana Lira
Os filmes aqui elencados tensionam, de forma interligada, passado e futuro, o visível e o invisível, presenças e ausências. São obras que ressaltam relações íntimas e familiares sem, contudo, apostar na teleologia da linhagem natural; pelo contrário, figuram desalinhamentos e realinhamentos, seja através de cortes abruptos nas relações, de maneira que o tecido do filme se torna ao mesmo tempo invocação de uma ausência e a presentificação de uma falta, seja através da criação de novos fios de relação, que inventam caminhos de aproximação entre geografias e histórias distantes e refundam laços de parentesco e de pertença cultural.
Sessão 1 – “O Destino da Semente da Terra é criar raízes entre as estrelas”**
Assim, ao enredarmos (Outros) Fundamentos (Aline Motta), Irun Orí (Juh Almeida) e O Mundo Preto Tem Mais Vida (Sabrina Duran), procuramos ativar os encontros da memória e da história atualizados no presente que resiste em ceder ao trauma, à autoridade sobre a vida. Fica escuro, também, nessa fricção entre as obras, que as histórias estão enraizadas em geografias móveis, apoiando-se na potência do corte cinematográfico para justapor espaços que remontam um mosaico de existências e resistências negras. (Outros) Fundamentos e Irun Orí materializam essas passagens transatlânticas, realizando uma dobra no espaço que liga indissociavelmente as histórias e os presentes do Brasil e África. Em O Mundo Preto Tem Mais Vida a travessia é também entre vida e morte, morte preta e morte branca. Abrindo-se enfim como um filme-portal Guiné-Bissau/Cabo Verde-Brasil, vida na morte versus morte em vida.
Disponíveis online entre 05 e 11/12 e 19 e 20/12.
Sessão 2 – “Quando o invisível se torna visível o olho demora a acostumar”***
Sair do Armário (Marina Pontes), Sob a sombra da palmeira (Tomyo Costa Ito), Notícias de São Paulo (Priscila Nascimento) e Michele de Michele Mesma: Narrativas de uma Mulher Sertaneja (Michele Menezes) fazem do jogo entre imagem e voz uma conjuração de ausências, traduzidas pelos diálogos, depoimentos e narrações como o invisível da imagem. Sair do Armário tem um projeto radicalmente fincado no invisível ao nos negar a imagem de uma diálogo entre mãe e filha, restando-nos as legendas que reiteram a força dramática do momento de saída de armário da jovem. Sob a sombra da palmeira e Notícias de São Paulo nos levam ao limiar das desaparições, permanências e reinvenções no poema e nas imagens. Ficamos assim com os muito ângulos de uma palmeira (e a sua sombra) que não cessam de crescer e multiplicar, enquanto tudo ao redor se vai: floresta, mangueiras, plantação de lótus, pai… Figura paterna que também assombra com as suas notícias de São Paulo, junto com as fotos de família que “tinham mas acabaram”, ao passo que o filme se investe em criar novos registros, retratos matriarcais de cotidiano e vida. Inventário de imagens familiares que Michele percorre e se despede: a chuva que fala, “a boniteza de dizer pedra de outro jeito”, a casa que vira arquibancada com a televisão. Por suas imagens-palavras o filme nos conduz à um “até logo”, com medo e liberdade para se tornar de si mesma.
Disponíveis online entre 05 e 11/12 e 19 e 20/12.
Sessão 3 – “Nunaqtigiit (Pessoas relacionadas pela posse comum do território)”****
Adentramos a essa constelação de filmes pelo Paraguaçu como fundamento e desaguamos em territórios partilhados no amor. Mães do Derick (Dê Kelm) e Filme de Domingo (Lincoln Péricles) partilham de uma preocupação em mostrar o mundo não apenas através da perspectivas de suas personagens adultas e sua relação conflituosa com o mundo, mas também sob o ponto de vista de duas crianças cujas presenças costuram a trama e amalgamam laços comunitários. Em Mães do Derick, a construção de uma família lésbica poliamorosa aponta de maneira quase utópica para um mundo de mulheres, entre mulheres. Em Filme de Domingo, a quebrada é transbordamento de vida, saudade, corres, notícias tristes, cosquinhas na rede, pastel na feira, fim de tarde juntinhos, espiritualidades ancestrais. Sem distinções.
Disponíveis online entre 05 e 11/12 e 19 e 20/12.
*Tradução livre de um verso do Poema “The Baptism”, de Carl Hancock Rux, 2020.
** “Parábola do Semeador”, de Octavia Butler, 2018 [1993]
*** “NOIRBLUE – deslocamentos de uma dança”, de Ana Pi, 2017.
**** Tradução do título do poema de Joan Naviyuk Kane, 2013.