Tempo de Feijão-Pedra, por Ramayana Lira
Dos filmes que vi no processo de curadoria para o CachoeiraDoc os que mais me impressionaram foram os que pareciam querer adiar o fim do mundo. Se, por um lado, é completamente compreensível que, no Brasil, boa parte do pensamento e da criação artística tenha sido capturada pelo catastrófico resultado das eleições de 2018, uma outra parcela de obras se arrimou no presente de grupos e comunidades que insistem no ainda não!. Ora, é certo que, por um lado, são vários os mundos que desmoronam; contudo, por outro lado, há os mundos cuja emergência os filmes captam e constroem. Se, para João Cabral de Melo Neto, escrever se avizinha do catar o feijão, também o gesto curatorial enfrenta o risco de encontrar “o grão imastigável”, aquele que “obstrui a leitura fluviante, flutual, açula a atenção” (“Catar feijão”). É esse imastigável, essa pedra em meio ao feijão, ou antes, esse feijão-pedra, esse disforme, esse cuja forma é um não-ainda, que me interessou. Entre imagem e mundo, a fricção se dá por aquilo do mundo que, na imagem, ainda não se con-figurou, ou já se des-figurou, ou seja, não é novo ainda, ou já o deixou de ser há muito.
A provocação do nosso presente imediato é entender, na dobra da temporalidade do “ainda não” e dos rastros e pistas do “não mais”, o tempo de um agora simultaneamente esvaziado e intensificado. Tempo, tempo, tempo. A curadoria tornou-se, antes de tudo, rinha com o tempo. Esse tempo esquisito de pandemia que, como na persistência da memória de Dalí, dissolve relógios, desregra rotinas, desmantela metrônomos. Um tempo troncho, esquisito. Um tempo queer. Pessoas queer desde cedo ensaiam a dança em outros tempos, outras pulsações. Há uma nossa parte queer que sofre muito com o tempo pandêmico (muito em função da necessidade de respondermos ao que o tempo da normatividade nos impõe). Contudo, há, também, um repertório vasto de temporalidades experimentais que criamos, como diz J. Halberstam, através de uma lógica que foge aos marcadores paradigmáticos da experiência: nascimento, casamento, reprodução, morte. Inventamos através dessa lógica. Recolocamos a necessidade do “ainda não”.
Curar, deitar a carne ao sol, esperar que o tempo cure. Uma espera, um “ainda não” (não seria exatamente aí que acontece a imagem técnica, na espera antes do clique, do rec?). O que “ainda não” na imagem, o feijão-pedra. O que permite adiar o fim e sonhar o futuro (não um futuro preenchido por alguma teleologia, mas o futuro como possibilidade ainda não configurada). Foi isso que vi em À beira do planeta mainha chamou a gente, de Bruna Barros e Bruna Castro.
À beira do planeta mainha soprou a gente (Bahia, 2020, 13 min.)
Direção: Bruna Barros e Bruna Castro – abeiradoplanetafilme@gmail.com
Sinopse: Recortes de afeto entre duas sapatonas e suas mães