Relatos de uma curadoria provisória, por Kênia Freitas
Como assistir aos filmes em meio a essa pandemia? A minha cabeça parece vagar entre esse conjunto de imagens e sons muitas vezes se perdendo em pensamentos outros – a doença, a necropolítica, as mortes, o futuro incerto. Ansiedade e paranoia e algumas tentativas de luto. E os filmes continuam ali, passando… – como devem.
Jota Mombaça tem um texto em que fala da “Parábola do Semeador” (Octavia Butler) chamado “Lauren Olamina e eu nos portões do fim do mundo” (2016). Nas parábolas (do Semeador e dos talentos), Lauren Olamina (a quem Mombaça se junta nos portões do impossível) é uma mulher negra diante do apocalipse (econômico, ambiental, social) buscando não apenas sobreviver ao presente catastrófico, mas criar raízes entre as estrelas como um plano de futuro. Penso que Butler sabe das coisas e fico procurando essas estrelas e raízes.
Voltando à Mombaça em seu portal, nesse texto, ela lança uma definição que tem me acompanhado cada vez mais: a de um pessimismo vivo: “capaz de refazer indefinidamente as próprias cartografias da catástrofe, com atenção aos deslocamentos de forças, aos reposicionamentos e coreografias do poder. No limite, falo de um pessimismo que é nada mais que um estudo, no sentido trazido aqui a partir de Moten e Harney: um plano de fuga” (Mombaça, 2016: 48). Um pessimismo vivo que não é desistência, mas plano de fuga.
E o que me inquieta é justamente essa necessidade de seguir, de traçar estudos e rotas de fugas diante do cenário atual. Se é necessário acabar o mundo como nós conhecemos para recomeçar o mundo (como a Denise Ferreira da Silva sugere e eu acredito), como a gente passa por esse fim do mundo? O cinema e as suas imagens e sons dão conta disso? Deveriam dar?
Nesse momento, só posso dizer que não sei. E lembrar novamente das palavras das parábolas de Butler: “Para ressurgir das próprias cinzas uma fênix deve primeiro queimar”.
Voltei brevemente aos filmes inscritos para o CachoeiraDoc esses dias, a partir da provocação dessa curadoria provisória nesse festival impossível. Voltei de forma bem errática, pescando coisas ali e aqui que pulsavam diferente – a cabeça vagando e os filmes que passam (ainda bem!). Como apontava as impressões coletivas, reencontrei ali de fato muitos filmes que se dirigem a um passado próximo de golpes parlamentares-midiáticos e resultados de uma eleição ainda inconsolável. Um passado tão recente e também já incrivelmente distante em desejos e anseios desse agora. Isso me parece mais culpa do tempo traiçoeiro, do que dos filmes. Os filmes passam e, às vezes, a gente não consegue vê-los.
Consegui enxergá-los um pouco mais procurando as tais raízes entre estrelas ou algumas cartas do futuro – talvez até melhor falar em cartas de depois do futuro, para retomar a ideia do Franco “Bifo” Berardi para isso que virá e a gente não consegue ainda vislumbrar diante da nossa ausência de imaginação e perspectiva. Umas imagens e sons que me parecem endereçados para estratégias de sobrevivência e de cura para nossos incertos tempos vindouros.
Falo aqui de filmes como: “O arco do tempo”, do Juan Rodrigues (que nos grita que não estamos sozinhos de algum lugar do espaço), “Lembrar daquilo que esqueci” da Castiel Vitorino (que nos prepara para a cura) ou mesmo o já tão viajado intergalaticamente “Negrum3”, do Diego Paulino (com Aretha Sadick chegando na nave de Sun Ra para nos fazer mover para além).
Para essa conversa, permeada de impossibilidades e provisoriedades, eu acabei cismando com o filme de guerrilha “Relatos Tecnopobres” de João Batista Silva. Essa ficção especulativa em si tecnopobre que parece cada vez mais um documentário do nosso presente. Com o filme gostaria de pensar junto sobre como forjar – no possível e no impossível – essas estratégia de sobrevivência e de vida, amparadas por esse pessimismo vivo que nos guia. Buscando para agora formas de ver/rever/desver o cinema com suas imagens e sons que passam.
Relatos Tecnopobres (Goiás, 2019, 13 min.)
Direção: João Batista Silva – joaobatista.cinema@gmail.com
Sinopse: Após o apocalipse político de 2019 graves violações aos direitos humanos foram cometidas contra as populações tradicionais e periféricas visando à sua extinção. Em 2035 os sobreviventes lutam pelo direito de viver e articulam uma revolução.